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    Arquivo: Edição de 17-09-2012

    SECÇÃO: Destaque


    NO ÂMBITO DAS I JORNADAS DOS CAMINHOS DE SANTIAGO...

    Ermesinde partiu à descoberta da(s) História(s) dos caminhos de Santiago

    Fotos MANUEL VALDREZ
    Fotos MANUEL VALDREZ
    Classificados pela UNESCO como Património da Humanidade, os Caminhos de Santiago vão muito além de um simples ritual cristão seguido por peregrinos do Mundo inteiro que a Compostela se deslocam no sentido de venerar ou prestar tributo ao apóstolo São Tiago. Na verdade este ritual – continuemos a denominá-lo desta forma – transcende as fronteiras de cristandade, calcorreando os patamares da culturalidade, ou mesmo da introspeção que caminheiros – cristãos ou ateus, homens e mulheres com mais ou menos fé – vindos dos mais diversos pontos da aldeia global procuram, na tentativa de se (re)descobrir a si próprios ou simplesmente de testar as suas capacidades físicas e mentais ao embarcar nesta longa jornada. Esta múltipla essência dos Caminhos de Santiago, por assim dizer, esteve a descoberto em Ermesinde, no passado dia 15, durante as I Jornadas dos Caminhos de Santiago, evento organizado pelo Terra Verde – Grupo de Pedestrianismo de Ermesinde e pela Ágorarte – Associação Cultural e Artística. Já de si revestida de um profundo interesse, a temática foi ainda mais enriquecida pelas intervenções de um leque de prestigiados oradores que, na nossa freguesia, nos deram a conhecer inúmeros pontos e factos históricos de uma caminhada que diz quem pelo menos uma vez na vida a percorreu, ser marcante e única!

    Um número bastante considerável de público acorreu ao Fórum Cultural de Ermesinde para assistir às I Jornadas dos Caminhos de Santiago. Evento que seria inaugurado com a exposição documental intitulada “Pelos Caminhos de Santiago”, da autoria de dois dos principais mentores destas jornadas, Manuel Valdrez e Jorge Torres, membros do Terra Verde – Grupo de Pedestrianismo de Ermesinde. Composta por um conjunto de imagens vivas, onde eram resgatados momentos de inúmeras etapas dos Caminhos de Santiago levadas a cabo pelo grupo Terra Verde, imagens essas que se faziam acompanhar de objetos, de brochuras, de indumentárias, etc., personificadores da mística das épicas jornadas, a exposição – que estará patente no Fórum Cultural até ao próximo dia 30 de setembro – constituiu o primeiro grande momento da tarde. Seguidamente, e já no interior do auditório da casa de espetáculos, o presidente da Direção da Ágorate, Carlos Faria, daria as boas vindas a todos, ressalvando a importância que estas jornadas teriam para Ermesinde, passando posteriormente a palavra ao outro “parceiro” da organização do evento, o grupo Terra Verde, que na voz de Jorge Torres começou por dar conta da honra que a sua associação sentia em promover estas jornadas, recordando em seguida que após o início de atividade, em 2008, e depois da realização de mais de uma centena de percursos por todo o país, a Terra Verde decidiu focar a sua atenção noutros caminhos, nos Caminhos de Santiago. Uma nova aventura que teve início em 2009, e de lá para cá foram já realizadas duas jornadas, estando a terceira já na forja para o próximo mês de outubro. Sublinhando que a prioridade do grupo Terra Verde será daqui em diante os Caminhos de Santiago, até pela forte adesão de caminheiros/peregrinos às jornadas já realizadas, Jorge Torres deixou em seguida uma série de agradecimentos públicos a pessoas ou entidades que tornaram possível a realização destas I Jornadas dos Caminhos de Santiago.

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    Entre o muito público presente destacavam-se algumas figuras públicas locais, entre outros o presidente da autarquia de Valongo, João Paulo Baltazar. Presentes igualmente algumas personalidades ligadas à temática dos caminhos de Santiago, desde logo Luís Freixo, grande impulsionador e divulgador dos Caminhos da Costa, António Fernández Pablos, Manuel Rocha e Manuel Pinho, três membros da arquiconfraria de Santiago de Compostela, e ainda Maria da Graça, membro do Centro Jacobeo do Porto.

    No seu discurso, o presidente da autarquia de Valongo além de enaltecer o evento, recordaria que das pessoas que algum dia já fizeram os caminhos de Santiago e com quem já teve a oportunidade de falar, todas elas lhe transmitiram a sensação de terem feito algo de profundamente marcante, uma experiência única, testemunhos que levam o autarca a sentir um aguçado interesse em experimentar a referida sensação, conforme confessou, deixando a promessa que num qualquer dias destes acompanhará o Terra Verde numa das suas caminhadas/peregrinações a Santiago.

    Dualidade caminhada/peregrinação que serviria precisamente de mote para o momento seguinte destas jornadas. “Peregrino ou Caminheiro?”, o nome do documentário realizado por José Beça, uma presença habitual nas jornadas levadas a cabo pelo Terra Verde, que transpôs para o vídeo uma série de imagens e depoimentos de pessoas que vivenciaram as várias etapas organizadas pela associação ermesindense. Seriam essas pessoas devotos peregrinos ou meros caminheiros? Precisamente a essência deste mesmo documentário, descobrir com que espírito estas pessoas percorrem os caminhos de Santiago, e a resposta que encontrámos após visionar o trabalho de José Beça – excelente por sinal –, é que esta é uma jornada que pode ser abraçada com a mesma carga de emoção e entrega tanto por peregrinos como por caminheiros. Peregrinos fazem-no procurando refletir sobre a sua vida cristã, procurando a fé que muitas vezes julgam perdida, tentando encontrar a paz de espírito que fará com que se sintam bem consigo próprios, enquanto que caminheiros o fazem para descobrir culturas, saberes, mas também para se (re)descobrirem a si próprios, meditarem sobre a vida, testarem os seus limites físicos e metais numa longa jornada. Há portanto aqui uma ponte que liga peregrinos a caminheiros, um ponto comum entre pessoas com fé e outras com menos fé que encaram os caminhos de Santiago como uma experiência única e marcante nas suas vidas. Percorrer os caminhos de Santiago «é uma forma de estar na vida», «uma forma de interiorização, de reflexão connosco», «é uma ponte entre a cultura e a religião», foram alguns dos testemunhos de caminhantes/peregrinos captados por este documentário de José Beça. Entre todas estas pessoas há por isso sentimentos e formas de vivenciar estas jornadas muito comuns, não sendo de ignorar talvez o mais nobre de todos eles, o espírito de amizade e de partilha que se encontra ao longo desta… longa caminhada.

    Factos e lendas em volta de Santiago

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    E marcantes foram igualmente as intervenções do rico painel de oradores presentes, intervenções que giraram em torno da história e da lenda do apóstolo Tiago.

    Alcina Martins, vice-reitora da Universidade do Porto e com inúmeras publicações e participações relacionadas com os Caminhos de Santiago, foi a primeira a intervir. E fê-lo com o tema “Os Votos de Santiago na Idade Média: um tributo gerador de conflitos”, uma temática tão antiga e ao mesmo tão atual em certos aspetos, como mais à frente iremos ver. Emocionada pelo facto de, pela primeira vez, estar a falar publicamente na cidade onde passou grande parte da sua juventude, a reputada historiadora centrou a sua comunicação na questão dos tributos – ou impostos – que a igreja criou na Idade Média como forma de “alimentar” toda a estrutura, digamos assim, em volta de Santiago. Para compreender melhor a questão dos votos de Santiago fez uma deliciosa e pormenorizada viagem no tempo, recordado a lendária batalha de Clavijo, no ano de 834, na qual o rei Ramiro I, das Astúrias, se viu ajudado por um desconhecido cavaleiro montado num cavalo branco que, com a sua espada, atacava os mouros que até então nunca haviam sido derrotados pelos católicos que ocupavam a região norte da Península Ibérica. Convicto de que esse desconhecido cavaleiro que ajudou os cristãos a derrotar os mouros era nem mais nem menos do que Santiago, o rei Ramiro I, para demonstrar a gratidão ao apóstolo, prometeu doar à igreja de Santiago um dízimo do melhor vinho e trigo provenientes das terras da região pertencentes aos cristãos. Dali em diante todos os camponeses da região deveriam pagar à igreja uma medida de pão e outra de vinho. As dioceses de Braga e do Porto não concordariam (mais tarde) com esta medida, e como eram pontos importantes de passagem dos peregrinos a caminho de Santiago achavam-se no direito de cobrar os seus próprios votos. Fizeram-se junto dos camponeses cristãos das respetivas regiões, sob pena de caso estes não pagassem o referido tributo serem excomungados e deixarem de viver em paz e gozar da liberdade religiosa que possuíam. No século XVI, e numa altura de profunda crise, este tributo a Santiago sofreu um aumento – onde é que já ouvimos isto nos dias de hoje?, gracejou a historiadora – e originou a revolta do povo, merecendo a intervenção de reis, de bispos, e até do papa. Houve uma luta enorme na tentativa de travar o ímpeto da igreja, acabando os votos a Santiago por conhecer o seu fim já no século XVIII, e o curioso nesta história é o facto de que mesmo revoltados com o(s) aumento(s) do tributo a Santiago o povo católico nunca deixou de mostrar devoção pelo apóstolo de Cristo.

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    Caminhos de Santiago que se espalham por toda a Europa e vão de encontro aos caminhos espanhóis. Entre os caminhos trilhados no Velho Continente encontram-se os caminhos portugueses, percursos que tocam várias localidades do nosso país e sobre as quais foram deixadas marcas ao longo de vários séculos. A cidade do Porto guarda inúmeras marcas dos Caminhos de Santiago, sendo precisamente este o tema que deu origem à intervenção seguinte, a de Manuel Araújo, técnico superior do Arquivo Histórico Municipal do Porto, que trouxe a estas jornadas a comunicação intitulada “Os Caminhos de Santiago no Porto”. Um trabalho que expõe precisamente as várias marcas que o Porto guarda, ou guardou e que já não existem, relacionadas com este ritual que carrega já 12 séculos de existência. Marcas várias, como por exemplo a imagem de Santiago esculpida em madeira que se encontra nos claustros da Sé portuense, fazem parte desse rico espólio. Manuel Araújo traçou ainda os caminhos que os peregrinos faziam na Idade Média quando passavam pelo Porto rumo a Santiago de Compostela. Recordou que numa época em que o Douro não era atravessado por pontes o trajeto da ligação Gaia-Porto era feito através de barcas, as quais atracavam no cais da Ribeira deixando peregrinos que dali seguiam por ruas específicas da cidade onde as marcas de Santiago estavam tão vincadas. Recordou, por exemplo, o primeiro albergue existente no Porto a acolher os peregrinos, ou meros caminheiros, a Albergaria de S. Crispim, ou S. Crispiniano, datada de 1301. Lembrou ainda a passagem do rei D. Manuel I pelo Porto, em outubro de 1502, quando este se dirigia em peregrinação rumo a Santiago, história esta que aliás serviu de ponto de partida para a elaboração desta comunicação apresentada em Ermesinde. Uma passagem real envolta em alguma polémica, na época, já que o rei criou um imposto específico, chamado de finta, para custear as despesas da sua estadia – e da restante corte – na cidade portuense.

    Histórias lendárias que tiveram seguimento na intervenção seguinte, a do reputado arqueólogo e historiador portuense Joel Cleto, que nestas jornadas abordou a lenda envolta sobre Santiago. História e lenda que muitas das vezes surgem de mãos dadas, conforme o historiador deu a entender, aludindo à origem de Santiago, e do mito em seu redor, como uma lenda. A longevidade do tempo provoca a imprecisão quanto à data de início do mito de Santiago, o da descoberta do túmulo do apostolo na Galiza e do que dali daria origem, a construção do santuário e o início das peregrinações. Documentos há que mostram datas como 814, ou 816, enquanto que outros apontam para o ano de 820, ano este apontado como o da descoberta do sepulcro apostólico por parte do ermitão de nome Pelaio. Sobre este dado histórico, Joel Cleto lembraria que em toda a Europa só existem duas sepulturas de apóstolos de Cristo, a de S. Pedro, em Roma, e a de S. Tiago (ou Santiago) na Galiza. A Santiago é pois atribuída a responsabilidade da evangelização da Península Ibérica, pese embora o historiador tenha referido que as referências mais antigas da civilização não falam no apóstolo Tiago como o introdutor, por assim dizer, da cristianização da Península Ibérica. Reza a lenda que a primeira referência cristã na península ocorre na Carta aos Romanos por parte de S. Paulo, no ano de 58, na qual este dá conta da sua intenção em visitar esta região. Não se sabe porém se de facto este apóstolo terá ou não visitado a península, uma vez que não terá ficado qualquer vestígio da sua hipotética vinda. Há portanto um leque variado de versões, ou lendas, como Joel Cleto inicialmente aludiu à história de Santiago, bem ao estilo da igreja, que segundo o historiador sempre teve o hábito de cristianizar sepulturas – e consequentemente criar mitos – ao longo da história.

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    E como peregrinação – ou caminhadas – não estão dissociadas de hospitalidade a última intervenção da tarde, que abordou precisamente esta parte fundamental dos Caminhos de Santiago, precisamente a hospitalidade. Tema introduzido pelo historiador galego Celestino Rosal, também ele um “especialista” em questões relacionadas com Santiago, e que em Ermesinde estabeleceu a ligação que existe entre a hospitalidade e os caminhantes e/ou peregrinos. Descreveu então as albergarias das várias épocas e o que ofereciam aos caminhantes/peregrinos, os cuidados que lhes prestavam, e a importância que foram tendo ao longo de séculos na sustentação do ritual dos caminhos de Santiago.

    Posteriormente a este desfilar de factos históricos e lendários em redor de Santiago foi apresentado o livro de António Sá Gué, escritor habitualmente presente na Feira do Livro de Ermesinde, que a convite da organização destas jornadas deu a conhecer “Ultreia! Caminhos sem Bermas”. Com palavras do próprio autor, o livro é uma espécie de simbiose entre o caminho físico e o caminho interior, onde a personagem, ao percorrer os caminhos de Santiago, vai recolhendo aspetos de tudo aquilo o que o rodeia, estabelecendo uma ponte entre o caminho físico e o caminho interior.

    Já no cair do pano destas I Jornadas dos Caminhos de Santiago, o presidente da Direção da Ágorarte, Carlos Faria, faria uma confidência, ao dizer que ao longo da história o Fórum Cultural de Ermesinde testemunhou, quanto a si, inúmeros apontamentos culturais que contribuíram para o engrandecimento cultural da comunidade, mas que aquele a que tínhamos acabado de assistir iria ficar perpetuado na memória cultural de todos os que ali estiveram, elogiando e agradecendo consequentemente a iniciativa do grupo Terra Verde. Não poderíamos estar mais em acordo com o dirigente da Ágorarte.

    Por: Miguel Barros

     

     

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