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    Arquivo: Edição de 30-07-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    “Matriarcas e patriarcas”

    Ouço Vivaldi numa das minhas obras preferidas – “As Quatro Estações” – e vou deixando sair o texto que me vai dando gosto escrever, acompanhada do sol quente de verão que se faz sentir num dia de julho que tem o dígito 22 – um domingo de paz!

    Voltar há seis anos para uma freguesia da minha infância e juventude faz-me retroceder nas memórias que se reavivam quando nos cruzamos com rostos: de meninos e meninas que agora são homens e mulheres; de homens e mulheres que sempre foram – conheci-os como tal e agora estão “madurinhos”. Lembro-me também dos que já cá não estão e que só me atrevi a visitar lá no “cemitério velho” de Vermoim cerca de 30 anos depois de cá ter saído. Encontrei quem queria, no lugar de sempre e identificados com as fotografias e homenagens sentidas, de quem os amou e amará, pelo menos é isso que gosto de pensar.

    Concentrando-me na “gente madura” e de “boa cepa”, que teimosamente se vai mantendo por cá, num mundo que é de todos nós, tenho como primeira escola os meus pais, que atualmente com 80 anos, nasceram no Marco de Canavezes, ambos filhos de gente de luta e de trabalho, e penso que sempre ouviremos a minha mãe contar a história de ter 12 anos, e na procura de trabalho numa fábrica de papel que lá existia, na entrevista que lhe fizeram, lembrou-se de subir o degrau de uma escada para esconder o seu “ar franzino” da altura e parecer mais adulta para lhe darem emprego.

    Esta estratégia resultou e conseguiu ser admitida a troco do salário próprio para as tarefas que lhe foram incumbidas: auxiliar, ganhando 0,20 cêntimos por dia por varrer a fábrica, limpar casas de banho e passear os cãezinhos do encarregado que lhe fugiam pelo monte acima e ela tinha que correr muitas vezes a chorar com medo da responsabilidade de eles poderem desaparecer.

    Pego na célebre citação de Lavoisier: «Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma», para passar algumas das etapas do crescimento de dois jovens, que viriam a ser os meus pais, tendo em conta que a vida os cruzou num encontro que viria a ser selado por um casamento que teve lugar em 10 de Março de 1957.

    Contudo, foi no ano de 1959 que se deu o primeiro contacto do meu pai com a rua do Cavaco, ao ser o inquilino dum quarto que lhe foi alugado pela tia Lina e o Tio Pedro, peças fundamentais no seu primeiro contacto com Vermoim. Posteriormente, a minha mãe, que na altura trabalhava numa escola primária do Marco de Canavezes, deixava para trás a terra da sua infância, trazia dois filhos pequenos (os meus irmãos mais velhos) e juntavam a família numa casinha que alugaram nesta mesma rua e onde já eu viria a nascer.

    Maria da Glória haveria de ser o meu nome, herdado da minha avó materna, viúva, escolhida que foi para minha madrinha. Na falta de “apêndice” e porque os meus pais não sabiam como convidar um par de respeito para meu padrinho, a Tia Lina ofereceu prontamente o marido para desempenhar esse nobre papel e aqui o Tio Pedro veio substituir a pessoa que estaria destinada para me abençoar: o São José.

    Um dia destes ria-me quando me lembrava que, já miúda crescida, ficava “podre” quando subia a rua e o Tio Pedro resolvia vir à casa da filha – a “Ti Maria da Carne” porque aí, eu ficava mesmo encurralada pois não tinha “quelhas” para me esconder e fugir ao ritual dos afilhados: beijar a mão ao padrinho e dizer: «– A sua bênção, padrinho!».

    Sempre que isso acontecia e eu o via aparecer, pensava cá para mim: “estou tramada” e é lógico que podia não o fazer, mas este homem da terra era demasiado respeitoso e sério para eu me “baldar” a esta responsabilidade, tendo em conta que o seu prestígio e a sua reputação eram de um peso tremendo já para aquela altura: vendedor dos vinhos Batista, agente de seguros, tasqueiro, merceeiro e industrial numa arte comum para a época: os tamancos. Também confesso que não queria ficar penalizada no “folar”, que era sempre generoso e tão útil para quem é miúda.

    Na tal transformação da vida chegamos aos sete filhos, daí que a soma matemática contabilizava nove pessoas, que rapidamente se tornaram adultas e depressa a vida nos foi colocando em partilhas com famílias diferentes, em áreas de residência diferentes. Foi também num ápice que as circunstâncias da vida haveriam de me fazer voltar ao Cavaco, onde ainda hoje sorrio de algumas histórias quando no calado da noite desço a minha rua e encontro ainda as casas de sempre, apesar de muitas já lá não terem a sua gente, que precisou terminar a sua viagem.

    À distância dá-me sempre a ideia de que nesta rua éramos todos como o pedacinho de uma família, porque rapidamente se dava pela falta uns dos outros, fazia-se a troca de géneros e hortaliças que uns tinham a mais e ofereciam aos outros, e mesmo em tempos idos levava-se uma cafeteira de café quente ou uma tigela de marmelada aos que precisavam de mais apoio e que tinham mais dificuldade em enfrentar a vida.

    No ano passado a minha mãe decidiu inscrever-se no projeto de uma Associação – Lacesmaia, que concentra gente de bem que, de forma altruísta e voluntária, se coloca ao serviço dos outros, e durante três tardes por semana anima e cuida da “gente da sua terra”, que amadureceu de pé enquanto lhe foi possível e mesmo agora, muitos não se detêm perante as dificuldades de locomoção e fazem questão de se juntar, em grupo e participando das inúmeras atividades em que são muitas vezes os protagonistas.

    Para mim, foi gratificante quando, há tempos, tive a possibilidade de ir assistir a uma noite de fados que foi organizada para angariação de fundos desta associação. Quando entrei na sala vi concentrados ainda tantos rostos, de tanta gente que eu conheço, e fiquei feliz por ver que continuam teimosamente a caminhar pela vida. Eram tratados com um carinho enternecedor por gente que gosta de partilhar com os outros o tanto que tem dentro de si.

    Voltavam a chamar-me “Lola”, como sempre me conheceram, e eu seguia o som de quem me chamava e reconhecia o rosto sorridente de tantos que faziam parte da minha memória, para além das “meninas grandes da minha rua” – Lucinda, Armanda, Beatriz, Maria José, Fátima, etc., que chamam a minha mãe quando passam frente ao nosso portão e também não deixam que a alegria e boa disposição as abandone.

    Foto GL
    Foto GL
    Neste encontro que presenciei, uma das colaboradoras da equipa, que toda a gente identifica como a “Sr.ª Doutora da Farmácia”, de sorriso rasgado, dizia-me que todos gostavam da minha mãe, a quem ela tinha batizado com o nome da “Matriarca”, e eu não duvidei disso, porque a minha mãe anda feliz num sítio onde se sente compreendida, estimada e respeitada, mas penso que isso acontece com todas as pessoas que se atreveram a dar este passo, não se intimidando com o “estigma” que associam a “velhice” por frequentarem um centro de dia.

    Corajosa esta gente, porque se atreveu a dar mais um passo em frente e perceber que tem ainda tantos dons que a vida nunca permitiu que fossem descobertos por falta de condições, ou de tempo: bordar, colar, pintar, declamar, cantar e até rir de si mesmas e umas das outras, partilhando pedacinhos das suas vidas que, em muitos casos, fazem parte da lembrança de todos. Pessoalmente, gosto de ouvir a minha mãe dizer que a admiram, porque com os seus 80 anos ainda lê muito bem e comenta: «Se fosse hoje e eu tivesse este apoio, poderia ter ido muito mais longe nos estudos».

    Tudo isto se passa na designada “Casa do Povo”, que agora está sediada na minha rua. Soube que ofereceu graciosamente as suas instalações que permitem este convívio numa área carente como é o da terceira idade e coincidentemente, há poucos dias atrás, quando estive a participar numa Feira do Livro – um dos eventos culturais a que assisti foi os utentes do Centro de Dia da Casa do Povo de Ermesinde a declamar a sua poesia, em versos genuínos e alguns de agradecimento às suas cuidadoras, que nos faziam sentir a ideia de que seriam os pilares em que se sustentavam e também as pessoas que os compensavam de carinhos que nunca serão demais.

    Casas do Povo e para o Povo e ainda bem que são inúmeras as que existem por esse País fora, desempenhando com dignidade o papel para que foram constituídas, num projeto de gente que acreditou, deixando o seu legado a outros que lhes dão continuidade.

    Penso terem razão no que se refere à minha “matriarca” – uma mulher rija, de convicções muito fortes, que ainda hoje se atreve a hastear a “sua bandeira” usando nas missas a que assiste o seu véu de sempre, como se de uma bandeira se tratasse, e aqui poderia ser de um partido político, de um clube de futebol ou de uma qualquer outra associação, mas não é o caso porque, é mesmo a “bandeira da sua fé”, de que não se envergonha e que também e muitas vezes é muito maior que ela.

    O único ponto em que divergimos fortemente as duas: olhamos de forma diferente para a “bandeira da liberdade” e aqui o nosso duelo até se torna giro, porque ela representa também os dogmas e as barreiras que todos precisamos de ter coragem de derrubar para seguir em frente: liberdade com responsabilidade, um dos princípios de que não abro mão e é neste meu seguir em frente e numa caminhada em que a vida me cruza com seres humanos fantásticos, que se tornou minha companheira habitual de viagem de autocarro uma outra mulher da minha juventude – de carácter forte, temperamento forte com uma fé também muito forte.

    Igualmente com uma família numerosa, esta “matriarca”, que é uma guerreira porque, apesar dos seus 74 anos, também não se detém perante a vida – depois de juntar em refeição diária a família que precisa dela, ainda arranja tempo para ir visitar os seus “idosos e acamados”, habituados que estão à sua presença. Chama-se Maria José e é mãe de uma mulher que foi minha colega na escola primária e que, atualmente com a minha idade, nunca perdeu o ar de menina doce e meiga e que é nossa vizinha.

    Agora não é a “Rosinha das Trancinhas” da minha infância mas sim a “Rosinha da Farmácia” – a antítese da “espalha brasas” que sou, porque ao contrário de mim, ela prima por uma discrição que a faz semelhante a uma avezinha recolhida no aconchego do seu ninho, o que não impede de ser requisitada sempre que alguém precisa dela, porque a consideram amiga de todos, solícita para todos, compreensiva para todos, e com quem todos podem contar e em quem todos depositam a confiança da sua saúde em conselhos que lhe pedem. Esta sim, é a heroína que encontrei para a minha história – a menina que se esconde dentro dela mesma e que já deu para perceber que tem nome de flor: Rosa.

    Claro que esta abordagem não é um apelo feminista, e aqui dou a mão à palmatória adaptando a célebre frase “por trás de uma grande mulher haverá sempre um grande homem”, e o meu apontamento termina mesmo com uma sentida e merecida homenagem aos “patriarcas” e só preciso mesmo de partilhar uma das coisas que me tem divertido quando ouço discutir sobre quem é considerado o maior jogador do mundo.

    Para mim? Qual Messi, qual Ronaldo - o maior jogador do mundo é e será sempre cada um de nós, fitando e “driblando” o jogo da vida, mesmo errando nos passes que por vezes nos leva a meter o golo na própria baliza, e tudo se traduzirá no resultado final: matriarcas e patriarcas do passado, do presente e do futuro.

    Por: Glória Leitão

     

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