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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-07-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    No sábado há baile

    O homem era alto e bem parecido. A idade fizera nele os seus estragos mas, na apresentação e nas maneiras, conservava aquele ar de quem tinha o hábito de impressionar, um discurso polido embora imperfeito, que sujeitava às inflexões mais adequadas. Não obstante o seu esforço em resistir à tendência natural da idade, acentuava-se-lhe a curvatura dos ombros, as rugas e a palidez do rosto escanhoado aqui e ali inscrito de manchas acastanhadas que recobriam também a pele das mãos compridas apoiadas numa bengala de castão de prata. Os olhos eram ainda expressivos como últimas testemunhas dum tempo fagueiro num corpo que já dobrara a apertada curva dos oitenta.

    Aos sábados, naquela hora indefinida que é costume identificar como “depois do almoço”, nos autocarros que, da periferia do Porto, demandavam o centro desta cidade ou que passavam na Praça do Marquês de Pombal, havia desusada animação. Quem entrava inocente depressa reparava na troca de palavras entre os passageiros ainda que distantes: uns em pé a meio da viatura, outros sentados mais à frente ou nos derradeiros bancos; mensagens lineares ou trianguladas, divertidas e até brejeiras umas, outras enigmáticas, tão envolventes como os esquemas desenhados por grandes jogadores sobre um relvado. Conhecido que entrasse era, de pronto, saudado pelos que já ali se encontravam e respondia com idêntico bom humor a que não faltava o indispensável tempero do calão. Havia, sem dúvida, um relacionamento especial e de longa data entre boa parte dos participantes.

    A entrada do homem bem parecido não mereceu receção entusiástica talvez por não ser reconhecido como membro daquela confraria, sendo embora usuário do mesmo meio de transporte e, admissivelmente, dos lugares onde a maralha costumava encontrar-se. Ocupou um dos bancos voltados de costas para o motorista, lugares destinados a pessoas portadoras de deficiência, senhoras grávidas, adultos com crianças ao colo, homens ou mulheres de reduzida capacidade motora ou de idade avançada. Conquanto viajassem em pé muitas pessoas, o lugar à sua direita permanecia vazio. Uma mulher debruçara-se sobre o espaldar desse banco inocupado mas ficara indiferente ao amável convite do homem para tomar assento, resmungando algo não descodificável. Mantinha conversa com alguém à sua frente num tom de voz bem audível, apesar do barulho no interior do veículo. Mais recatado, o homem bem parecido, sem querer mostrar desagrado, antes insistindo no gesto simpático, comentou com a pessoa que viajava à sua frente:

    – A senhora ia, com certeza, mais confortável neste lugar…

    – Se calhar, vai descer numa paragem próxima – alvitrou a minha esposa.

    – Penso que não. É capaz de ir ao baile no Júlio Dinis e ainda está longe. Muitos dos que aí vão seguem p’ra lá. Não reparou que são conhecidos uns dos outros? As mulheres são mais reservadas mas há de ver que homens e mulheres saem todos na mesma paragem. Dantes, o encontro era no Silo-Auto mas fechou há muito. Ainda lá fui uma ou duas vezes só para ver o que se passava. Aquilo era uma confusão p’ra não dizer outra coisa e faltar ao respeito à senhora e ao seu marido.

    – Uma senhora que, certa vez, viajou ao meu lado falou-me no arrasta-o-pé do Silo-Auto e dizia gostar muito dessas tardes. Além da dança, havia um bar que servia sandes, bolos, refrescos e outras bebidas. Era viúva, tinha dois filhos já licenciados e destes vinham os maiores incentivos para frequentar esse tipo de diversão. Segundo eles, o falecido pai era um boémio, chegava sempre a casa às tantas da madrugada, agora era tempo de a mãe se divertir que eles já eram bem grandinhos para tomarem conta das suas vidas.

    – Mas nem sempre as coisas são entendidas dessa forma, minha senhora. Noutro tempo, havia os bailaricos das aldeias e de certos bairros animados por sanfonas ou rabecas que faziam delirar os/as jovens e deixavam os pais em sobressalto não fossem elas deixar-se enganar pelos namorados que, depois, raramente se responsabilizavam pelos seus atos. Nos dias que vão correndo, são os filhos que se preocupam com receio de que “esses velhos irresponsáveis” decidam “juntar os trapinhos” e lá se vão as pensões e as rendas de terrenos, de casas ou bens de outra espécie. É possível que, para alguns, seja conveniente porque, assim, alijam responsabilidades, depois que se aturem uns aos outros…

    Na paragem mais próxima do antigo cinema Júlio Dinis, os ocupantes do autocarro ficaram drasticamente reduzidos. Era tempo de mudar a agulha do diálogo:

    – Ia pouco além de cinquenta anos quando a minha esposa morreu. Tínhamos quatro filhos que ficaram à minha responsabilidade com a ajuda dos meus sogros. Entendi que tinha chegado a hora de mudar de vida. Sempre quis possuir um teto meu e achei que a minha vida não tinha horizontes, aqui nunca teria essa possibilidade. Fui para França, um bocado ao calha mas um amigo que já ali vivia há uns anos, deu-me o endereço de alguém que me podia ajudar. A pessoa que me recebeu gostou de mim. Marcámos um encontro num café para o dia seguinte. Conversámos bastante e, três dias depois de ter chegado, comecei a trabalhar. Trabalhei muito mas realizei o meu sonho. Os meus filhos foram muito bem tratados, estudaram mas nenhum foi para a universidade. Arranjaram emprego e, hoje, estão todos bem.

    A viagem terminou mas guardou para a despedida o que mais lhe aquecia o coração:

    – Já tenho três netos formados. Estou de bem com a vida.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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