Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 30-05-2012

    SECÇÃO: Destaque


    NOITE ALUCINANTE NO CENTRO CULTURAL DE CAMPO

    Teatro-conferência sobre transexualidade deu ocasião para uma inesperada homenagem a Júnior Sampaio

    Foi uma noite alucinante a que se viveu na passada sexta-feira, dia 25 de maio, no Centro Cultural de Campo. Em agenda estava uma iniciativa da Agência para a Vida Local da Câmara Municipal de Valongo que, mais uma vez com a presença da sua principal responsável – Eunice Neves – e com o já habitual formato de teatro-conferência, se propôs abordar o tema da transexualidade. E ninguém melhor para ajudar a discuti-lo do que Júnior Sampaio – que na sua recente peça “A Bailarina Vai às Compras” aborda precisamente este tema – e Telmo Fernandes, sociólogo, e membro da ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero).

    Só que, e de uma forma inesperada, no final os formandos de vários anos de atividade artística de Júnior Sampaio, decidiram prestar-lhe uma comovente homenagem e deixar-lhe um desesperado apelo...

    Fotos URSULA ZANGGER
    Fotos URSULA ZANGGER
    Noite de interesse superlativo no Centro Cultural de Campo, por razões a triplicar!

    Pudemos assistir, nesta sexta-feira, 25 de maio, a mais uma exibição memorável de Júnior Sampaio, que representou a última parte de “A Bailarina Vai às Compras”, com uma gestualidade cada vez mais fluida e depurada; a um debate intenso, esclarecedor, mas ao mesmo tempo muito vivo, participado e controverso, que se espraiou pelos temas contíguos da identidade e da orientação sexual; e, por fim, a uma inesperada e coletiva (ou múltipla) comovida e comovente declaração de amor ao mestre Júnior Sampaio pelos seus alunos de teatro.

    “A BAILARINA

    VAI ÀS COMPRAS”

    Júnior Sampaio, que além do ator que deu vida à Bailarina é também seu autor, começou por explicar ao público presente o tipo de iniciativa que ali iria decorrer, e que representaria apenas a segunda parte da peça, quando a Bailarina recebe da mãe a notícia de que está sem saldo, o que a obriga a ir devolver grande parte das suas compras no supermercado onde ainda se encontra.

    Logo ali o ator explicou que a peça tem bem presente a afirmação do género masculino na personagem (nascida oficialmente mulher), e que o tema abordava não a questão da sexualidade mas sim a questão da identidade sexual.

    A peça, a que “A Voz de Ermesinde” já por mais de uma vez se referiu, emerge da sua já intensa carreira de espetáculos, cada vez mais depurada nos ajustes da gestualidade, que é agora, cada vez mais, intensamente estilizada e poética – a par das palavras –, fruto naturalmente da vivência e reflexão do autor/ator.

    Dotado de competências invulgares ao nível da representação dramática, fruto do gosto e inclinação, mas também de uma aprendizagem exigente, o que se destaca na carreira de Júnior Sampaio é que põe estas competências ao serviço da arte que celebra a vida, numa perspetiva igualitária e universal, muito para além da exibição vã e gratuita em busca de fama barata.

    Muito desse projeto de paixão pelo teatro infetou irremediavelmente um grande número dos seus alunos, numa virose cujos surtos começam a tornar--se recorrentes, e que no final da noite tiveram expressão. Mas lá iremos...

    DA DISCRIMINAÇÃO

    À INDIFERENÇA

    foto
    Terminada a representação do largo fragmento de “A Bailarina Vai às Compras”, Eunice Neves explicou o intuito da sessão, fundamentando a escolha e apresentando os seus convidados, Júnior Sampaio (ENTREtanto) e Telmo Fernandes (ILGA).

    Foi este que tomou então a palavra para se refrir à peça acabada de exibir, como uma obra com várias camadas de leitura, e claramente bem adequada na ajuda da discussão do tema da transexualidade.

    Apresentou depois um pouco da história da ILGA, fundada em Portugal em 1995, e mais recentemente com um espaço de trabalho no Porto.

    Apesar da sua história recente, Telmo Fernandes fez questão de sublinhar que sempre existiram pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero), embora por motivos de discriminação e perseguição, nem sempre tivessem visibilidade.

    O ativista LGBT abordou depois a questão da importância das palavras e dos conceitos, recusando a ideia de que «as palavras não servem [querem dizer] nada». Pelo contrário, serviram muitas vezes para estigmatizar e é por isso que havido um trabalho de resgate das palavras.

    Numa sociedade em que a discriminação existe luta-se até para uma afirmação da diferença, até que esta possa gerar a instalação da indiferença entre todos na questão, por exemplo, da orientação sexual.

    DA INSIGNIFICÂNCIA

    DOS GENITAIS

    foto
    Júnior Sampaio falou então do caminho para a construção da peça “A Bailarina Vai às Compras”. Obrigado a fazer um novo espetáculo, veio-lhe a ideia de abordar uma questão que não percebia, a das pessoas que não se sentiam bem no próprio corpo.

    Depois de estudar o tema e conversar com pessoas que viveram no corpo essa situação, a estranheza começou a dar lugar à realidade e à naturalidade.

    A peça, no seu primeiro esboço, foi escrita de rajada, em três dias [e depois afinada sucessivamente entre ele e Quico Cadaval, o outro autor].

    Telmo Fernandes apontou que nós criamos categorias para ajudar a enfrentar as coisas.

    No caso da peça estávamos em presença de um personagem (transexual) masculino, muito embora este não tivesse nunca querido livrar-se da vagina com que havia nascido.

    «O processo pode ser concluído ou não», apontou Telmo Ferrnandes (mas mesmo esta ideia de “conclusão” poderá ser, só por si, preconceituosa.

    O ativista da ILGA informou também o auditório de que, desde 2011, e pela Lei 7/2011, se tinha tornado possível, mediante certas condições, o processo legal de mudança de sexo e alteração do nome em registo civil.

    Essas condições são a apresentação de um requerimento nesse sentido por uma pessoa maior de idade e a apresentação simultânea de um relatório clínico (multidisciplinar) que comprove uma patologia da identidade de género.

    Entregues tais documentos, isso permite, mesmo sem ter havido terapia hormonal, pedir a alteração de sexo e nome.

    O TERCEIRO

    GÉNERO

    Telmo Fernandes chamou depois a atenção para a persistência de um sistema binário de classificação da identidade sexual, quando em algumas sociedades, como na Índia e Paquistão, por exemplo, em que pessoas usam o termo hijras para se descrever a si próprias (nem homens nem mulheres), o que lhes é legalmente reconhecido.

    [É também o caso de fa'afafines, da Polinésia. AVE].

    O certo é ser verdadeiro para consigo próprio.

    A discriminação contra transexuais é notória, denunciou, Telmo Fernandes, que apontou, como um exemplo possível entre muitos, a dificuldade de acesso a casas de banho, onde aqueles não são bem vindos nem num sítio nem noutro.

    Depois, na prática, e apesar da lei, não tem acontecido a “facilidade” aparente da mudança de sexo. Do ponto de vista concreto, e até há pouco tempo ocorria que, no sistema nacional de saúde, só existia um médico habilitado para realizar a operação de mudança de género. Agora a situação estará um pouco melhor porque entretanto foi formada uma equipa que opera nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC).

    Avisando que se está longe de ganhar a batalha contra a transfobia, Telmo Fernandes apontou que muitas pessoas se podem sentir oprimidas pela obrigação de cumprir um papel de género, e que se tem vindo a compreender que a transfobia é mesmo uma discriminação mais forte do que a homofobia, e que por vezes é esta que está presente e não aquela, que antes era suposta. Finalmente referiu também que a ILGA atribui prémios a figuras públicas que, pelas suas atitudes ajudaram a destruir estereotipos.

    COMUNIDADE LGBT

    PODE NÃO ESCAPAR

    AO PRECONCEITO

    foto
    Júnior Sampaio falou depois das portas que “A Bailarina...” tinha aberto, como um espetáculo em Pernambuco, com uma grande audiência de público transgénero, que se sentiu bem retratado na peça.

    A palavra foi então jogada para o lado do público, aparecendo então várias questões que ajudaram o perceber o tema.

    Alguém questionou: Se quem tem uma vagina é mulher, então o que é alguém que tem uma vagina e um pénis?.

    Inevitavelmente o tema da homossexualidade veio também à baila, quando alguém apontou a hipocrisia das instituições e dos políticos, referindo a situação em que um homem sozinho poderia adotar uma criança, mas sendo casado com um companheiro, deixava de ter essa possibilidade.

    Veio à baila também a questão da existência da homossexualidade no mundo natural, entre outras espécies para além do ser humano, provando que a orientação sexual não é fruto da determinação cultural da nossa espécie. Um caso referido, que nos biólogos terá causado alguma estranheza inicial foi o da existências de vários casais de pinguins, ambos machos ou ambos fêmeas. O caso de um par do sexo masculino causou ainda mais interesse quando, posteriormente à sua descoberta se soube que tinha adotado uma cria.

    Outro testemunho vindo do público e que pôs a nu a questão do preconceito, mesmo dentro da comunidade LGBT, foi o de um homem assumidamente homossexual,e que sentindo-se atraído por outro indivíduo, foi de imediato alertado, pois tratar-se-ia de um transexual, correndo assim o “perigo” de assumir, sem o saber, uma indesejada relação “heterossexual”.

    Telmo Fernandes comentaria que, de facto, a questão da transexualidade nem sempre foi inteiramente pacífica, nem mesmo nos coletivos LGBT. Diria também que, mais que os próprios homossexuais, muitas questões da sexualidade são até mais complicadas e suscetíveis de incompreensão para outros segmentos da orientação sexual, como as pessoas bissexuais.

    E juntaria mais uma questão relevante para o debate, o interesse em flexibilizar a questão do género e despatologizar a “doença”. Referiu, por exemplo, que na Argentina era possível mudar-se o registo, mesmo sem a intervenção dos médicos.

    A questão motivaria mais uma intervenção interessante, precisamente de uma médica que questionava o interesse prático para a comunidade transgénero dessa flexibilização. É que, deixando de ser considerada uma “perturbação”, tal como aconteceu à homossexualidade, isso não iria fazer com que o sistema nacional de saúde se desresponsabilizasse pelas operações de mudança de género? Acabando-se assim por criar um escolho quando se cuidava facilitar toda uma situação.

    Defendeu também que tinha que haver diagnóstico, para que não houvesse qualquer confusão com, por exemplo pessoas crossdressers, que serão indivíduos heterossexuais mas que se sentem bem a usar peças de roupa do sexo oposto.

    Esta interveniente referiu também a existência de um preconceito em relação aos médicos, embora a classe médica, com o tempo, tenha vindo a perder preconceitos.

    No fundo o que se deveria repudiar era a preocupação inadmissível com o que os outros fazem, no seu restrito campo de escolhas ou tendências pessoais.

    Muitas vezes e desde muito cedo nos identificamos com um papel e comportamo-nos de acordo com isso, de acordo com o tal sistema de classificação binário homem/mulher, em vez de uma visão arco-íris, comentou Telmo Fernandes.

    Muitas vezes o que leva as pessoas a discriminar é o medo, apontou ainda. As pessoas têm medo daquilo que não conhecem.

    Muito interessante foi também o testemunho de uma assistente social que referiu o seu caso pessoal de técnica envolvida no apoio a miúdos abusados ou vindos de famílias desestruturadas, no Lar de S. José, precisamente aqueles miúdos responsáveis pelo tristemente célebre homicídio da transexual Gisberta Júnior, de quem aliás também era amiga.

    A Gisberta, testemunhou, foi o alvo de uma discriminação inimaginável, pelo facto de se encontrar então numa fase muito decadente, em que se acumulavam o seu HIV positivo, a sua tuberculose, a sua dependência de droga, e muitos outros fatores que catalizaram a violência contra si.

    Apesar de tudo interrogou--se sobre quaão difícil era escolher a vítima neste caso.

    E tinha decidido, mais do que nunca, tornar-se ativista pelos direitos das pessoas esquecidas e negligenciadas nesta sociedade que apregoa que trata todos por igual.

    «Somos todos diferentes, únicos e especiais», apontou, na defesa de um princípio de equidade.

    Toda a gente faz falta na fauna que somos.

    A conferência-debate terminou com Telmo Fernandes a anunciar o interesse de uma exposição LGBT patente na Faculdade de Psicologia, “Parágrafo 175”, referência a um parágrafo que só foi abolido nos anos 80 na legislação alemã (vinha desde o século XIX) e permitiu que até essa altura continuassem muitos homossexuais internados em campos de concentração, perpetuando assim o tempo do terror nazi.

    Por: LC

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].