Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 29-02-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 22-03-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    «A vida é o dia de hoje/ A vida é ai que mal soa/ A vida é sombra que foge/ A vida é nuvem que voa…» (*)

    Conta a lenda que um jovem monge tentava, obcecadamente, compreender a fugacidade da existência humana em comparação com a eternidade, sem que lograsse tal entendimento. Rogava a Deus que lhe permitisse alcançar o almejado intento mas, do céu, não lhe chegava resposta. Porfiava, contudo, num inabalável ato de fé, certo de que Deus não abandona os que n’ Ele depositam a sua esperança. E, certa manhã, enquanto rezava matinas passeando na cerca do convento, foi atraído por um passarinho que saltitava de árvore em árvore, chilreando, como que a convidá-lo a apreciar a obra do Senhor.

    O bom frade, que via em todos os seres criados a imagem de Deus, seguiu-o como seguiria um anjo, nem deu por ter ido além do espaço conventual, parava quando a criatura alada fazia uma pausa, prosseguia quando ela retomava o percurso, sem cuidar de alimento, repouso ou satisfação de outras obrigações, exceção feita às necessidades que a fisiologia humana torna imprescindíveis. Alimentava-se, ocasionalmente, de frutos silvestres que ia encontrando à beira do caminho e matava a sede debruçado sobre uma nascente ou num dos vários cursos de água que tinha de atravessar. Quando a avezinha suspendia o voo, era tempo de recuperar forças. Dormitava e, mal ouvia de novo o gorjeio, ali estava ele pronto para continuar. Subiu e desceu colinas, palmilhou vales, embrenhou-se em bosques, suportou a chuva, quiçá a neve, resistiu ao vento frio e ao apertado abraço do astro-rei, tão fascinado que outra coisa não lhe ocupava a mente senão a Voz que ansiava escutar. Porém a Voz nem sempre se faz ouvir por meio de sons articulados, ela penetra nos corações, instala-se e não diz “estou aqui”. É preciso ficar atento, porém o monge insistia em procurá-la no exterior, na nuvem que passava, no frio que lhe castigava as carnes, na brisa que lhe afagava o rosto, no sol que lhe crestava a pele. Absorto a olhar para o céu, não via a sua imagem refletida na água dos ribeiros que cruzava, não se apercebia das mudanças operadas na sua própria aparência, considerava a dificuldade em caminhar como consequência natural do cansaço e da falta de exercício físico.

    Passado algum tempo, que o frade julgou tratar-se de alguma dezenas de minutos, encontrou-se, de novo, à beira do convento pronto a reintegrar-se no programa da irmandade. Estranhou o lugar e o edifício, mas foi ali que o passarinho o deixou antes de desaparecer. Seguiu, confiante, para o que julgava ser a porta de entrada mas constatou que tinha agora outra serventia. Apercebeu-se de que alguém entrava ou saía noutro ponto do edifício e para lá dirigiu os seus passos. Ainda mais surpreendido ficou ao deparar com o frade que guardava essa porta, cuja fisionomia lhe era totalmente desconhecida. Declinou o seu nome e propunha-se entrar, todavia o irmão porteiro pediu-lhe que esperasse um pouco. Solícito, pegou-lhe num braço para o ajudar a sentar-se no banco de madeira ali existente. Foi chamar o abade que também revelou enorme surpresa com a figura e a linguagem daquele homem nunca antes visto, que se dizia integrante da comunidade. Após breve troca de palavras, cada vez mais intrigado, pediu ao homem que aguardasse mais um pouco, enquanto ia resolver um problema urgente. Encaminhou-se para o scriptorium e compulsou os registos dos irmãos de épocas anteriores e quando, já quase descrente, verificava os ali residentes em décadas e séculos volvidos, deparou com o nome pronunciado pelo irmão que motivara a consulta, com uma chamada e nota de rodapé dando conta do seu misterioso desaparecimento. Pediu que o levassem à sua presença e deu-lhe conta do que descobrira. O frade, em extremo debilitado e com enorme esforço, pronunciou os nomes do abade e de outros irmãos seus contemporâneos. Não havia dúvidas, o homem que tinha na sua frente saíra do convento e desaparecera havia trezentos anos. Alvo de todas as atenções e já em extremo debilitado, recebeu os últimos sacramentos e entregou a alma ao Criador. À hora da morte compreendera, finalmente, o seu grande desafio existencial.

    foto
    Curiosa a nossa memória! Faz associações que para outros podem parecer estranhas, porventura ridículas. A lenda edificante, guardada num cantinho da memória, veio ao de cima quando revisitei a ermida de Santo Amaro após largo tempo de ausência. Quantos anos? Não sei, mas foi há muito tempo. Do primeiro lembro-me bem. Fez sessenta e sete anos. Eu ingerira sementes da planta vulgarmente denominada figueira-do-inferno, estive em risco de vida e o meu pai, sempre extremamente zeloso com a saúde dos filhos, jogou em dois tabuleiros: no humano, indo, noite fora, à procura do médico a Vinhais enquanto a minha mãe, em aflição desmedida, me fazia engolir uma colherada de azeite por lembrança das vizinhas sempre solidárias; no transcendente, invocando a intercessão de Santo Amaro por quem as gentes de Alimonde sempre tiveram particular devoção. Quando o médico chegou, já o novo dia se fazia anunciar, pouco mais teve que fazer senão aplicar-me uma injeção e elogiar o valimento do remédio caseiro, resultado da sabedoria popular, no dizer do próprio médico, ao ser informado pelo meu pai dos procedimentos seguidos:

    - Se não ingeriu grande quantidade de sementes, o azeite pode ter-lhe salvado a vida.

    No dia 15 de janeiro de 1945, pude ir à festa, a pé, pela mão do meu pai, agradecido e orgulhoso a um só tempo.

    Quando ouvia os meus pais lembrar acontecimentos de há 20 ou 30 anos, sentia uma estranha sensação de irrealidade, ecos de um mundo perdido num horizonte inimaginável embora eu acreditasse porque eles os referiam. Esses 20 ou 30 anos eram, para mim uma eternidade. Os 67 anos que me separam dessa primeira festa de Santo Amaro têm, igualmente, para mim uma aura de “não tempo”. Parece que foi ontem, como às vezes se diz? Não, parece que esse episódio não se deu comigo, foi com outra pessoa, outra criança que já não existe ou que nunca existiu.

    Tive a gratíssima surpresa de reencontrar gente com quem, outrora, convivi, incluindo a minha comadre Aurora e o tio João Grilo, nos seus quase 96 anos de vida, algo limitados de movimentos, ela ainda muito lúcida e conversadeira, ele que, durante muitos anos, animou as festas das aldeias em volta com o seu altifalante, a debitar as modinhas dançantes mais em voga, que gostava de saudar os forasteiros ao entrarem na aldeia, convidando-os para comer e beber em sua casa, e de lembrar as suas experiências de vida nos subúrbios do Rio de Janeiro, agora menos expansivo, porventura já afetado pela amnésia própria da idade.

    (*) João de Deus, “A Vida”, in “Versos”, Clássicos da Língua Portuguesa, edição Círculo de Leitores, 2ª edição, 1980.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · Tudo bons rapazes!
    · Relógio biológico

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].