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    Arquivo: Edição de 08-03-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    CRÓNICAS DE LISBOA

    Morrer, quanto mais tarde melhor?

    Há tempos, dizia-me o meu cardiologista, ainda jovem, e para me sossegar dos meus medos da morte, que há dezasseis anos eu corri o risco de influenciar, negativamente, a estatística da esperança média de vida (EMV), pois o primeiro enfarte agudo do miocárdio que me vitimou poderia ter sido fatal. Enfatizou, como se eu já não soubesse, que este tipo de patologia é considerada uma doença grave, pelo que o tempo que eu já vivi, após aquele episódio e apesar de ter tido outro seis anos depois, faz com que os meus atuais sessenta e dois anos já me aproximem mais da EMV. Aquela observação e dita assim, senti-a como um prémio, mas também como um castigo, pois ainda me faltam alguns anos para entrar na EMV dos homens no nosso país (75 anos; a das mulheres é de 81,2 anos). Para esta média estatística contribuem os valores dos extremos, isto é, gente que atinge idades provectas, que eu gosto de chamar “bonita idade”, mas outros que morrem mundo prematuramente. Teria sido o meu caso, se, naquele fim de dia, não tivesse corrido para a urgência do hospital da minha zona, apesar de, na época, não saber o que era um enfarte do miocárdio. A rapidez da (minha) ação e da assistência hospitalar, salvou-me a vida, pois a conjugação destas duas etapas pode significar a diferença entre a vida e a morte prematura nas doenças cardio-vasculares.

    Por várias razões, a EMV tem vindo a subir no nosso país, mas não é expectável que continue a subir, pois aqueles cidadãos que têm contribuído para este indicador, são gente feita de “outras cepas”, apesar de terem vivido tempos difíceis ou talvez por isso. Os erros que a população mais nova hoje vai cometendo (alimentação, tabaco, drogas, etc.) poderá inverter essa tendência. Todos nós teremos que morrer e, normalmente, a certidão de óbito refere uma causa ou doença, pelo que as estatísticas acabam por ficar viciadas. Por exemplo, dizer que x% dos portugueses morreram vitimados pelas doenças cardio-vasculares não tem o mesmo significado que dizer que y% dos portugueses, com menos de sessenta e cinco anos, morrem por causa deste tipo de doenças graves, pois os idosos também morrem com as ditas doenças do coração.

    Todo o ser humano merece o nosso respeito, na vida e na morte, embora esta quando ocorre na bonita idade não represente a mesma dor que as mortes com outras idades. Mas, além da morte física, existe ainda a ” morte” em vida e esta pode ter várias razões e formas, muitas delas causadas pelas consequências da organização atual da sociedade, sem esquecer o efeito da rotura intergeracional familiar, provocadas pela desestruturação das famílias. A baixa natalidade, fenómeno que não é de agora mas que tem vindo a agravar-se, tem acabado com muitas árvores genealógicas, pelo que muita gente não tem qualquer familiar, mesmo afastado, que, no mínimo, lhe faça o funeral. Os tristes exemplos dos cadáveres de idosos encontrados em casa, bem como o número deles que vivem sós, refletem essas roturas intergeracionais, no espaço geográfico mas também na consanguinidade.

    Por estes dias, visitei várias vezes um vizinho, de oitenta e cinco anos, que foi internado, pela primeira vez na sua vida (!) mas, pela observação que fui fazendo em cada visita que lhe fiz, me parecia que aquele poderia ser o primeiro e o seu último internamento. Assim foi, e acabou por falecer dez dias depois de ter sido internado. O seu colega da cama do lado, que tinha a mesma idade, mostrava-se muito agastado, porque ainda tinha energia para isso. Disse-me que sempre foi cuidadoso com a saúde e agora estava ali há cerca de um mês internado e os médicos não descobriam a origem dos seus males. Quando lhe disse a minha idade e a minha doença (apesar de invisível), mudou um pouco de tom e, se eu fizesse como o meu cardiologista, dir-lhe-ia que ele já ultrapassou a EMV ou, como às vezes digo a outros, quem me dera chegar à sua bonita idade. A maioria das pessoas não querem morrer, pelo que é legítima a sua revolta com as doenças que as acometem, mas grave e extremamente doloroso é o que sentem todos aqueles que, na plenitude das suas vidas, veem os seus projetos e sonhos interrompidos, muitos deles zelosos pela sua vida e saúde! Esse têm razão para sentirem, no corpo e na alma, as consequências da adversidade e infelizmente, para muitos doentes, a solidão e a falta de solidariedade acaba por ser um duplo castigo na desgraça da sua doença e do seu sofrimento.

    “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos” é uma máxima muito antiga e cujos familiares, em particular, e a sociedade, em geral, têm por dever e missão. Se o desenvolvimento da medicina tem dado um forte impulso nesse “cuidar e curar dos vivos”, contribuindo para o aumento da EMV e da diminuição do sofrimento, refiro-me aos países desenvolvidos, faltam outros cuidados necessários até à etapa final da vida humana, isto é, o “depósito dos restos mortais no cemitério”, com dignidade. Estes são novos desafios das sociedades atuais, mas que está a falhar nesta missão, mais preocupada com outros valores. Mas o “futuro é velho” e se é verdade que todos desejamos chegar a essa bonita idade e com sentido de vida, temos que olhar, individual e coletivamente, para esse futuro e que já é presente para muitos idosos. Onde estão ou estarão os cuidadores, ameaçados em número pela baixa natalidade e dificultando a renovação das gerações, em rotura de valores?

    Este é um grave problema do nosso país a que urge deitar mãos, mas é uma tarefa de todos (famílias, Estado, instituições, etc.). O vergonhoso número de idosos encontrados mortos nas suas casas já mexeu com muitas consciências e pôs em marcha algumas ações no sentido de minorar os efeitos da solidão e o abandono dos nossos idosos. Assim se faça, porque todos desejamos chegar a velhos!

    Por: Serafim Marques

     

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