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    Arquivo: Edição de 08-03-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Terras do Nunca

    «Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo».

    José Saramago

    Engraçada a vida, que me tem feito cruzar com citações de José Saramago, o autor de quem eu dizia não gostar mas que nunca me tinha atrevido a ler. Humana que sou, também eu cometi o erro dos humanos, “eliminá-lo” pelo que lia ou ouvia na imprensa, sem me atrever a ler e a julgar por mim, e agora descubro que ele foi também filho, e pai e eu nunca me tinha lembrado disso.

    Eu, mesmo sem conhecer esta definição de filho e desde que me lembro, sempre ouvi o meu pai dizer à minha mãe: «os filhos não são nossos, são do mundo!».

    E tem razão o meu pai e todos os pais que pensam assim, só que a vida me tem feito cruzar com filhos que são cada vez mais dos pais, que precisam tanto dos pais que estes deviam durar para sempre e ponderei sobre isso quando conheci um jovem que, atualmente com 34 anos, foi vítima de um brutal acidente de viação que o transformou, há 12 anos, num tetraplégico.

    Joel é corajoso, de olhos verdes cheios de sonhos e partilha comigo o mais importante de todos: uma namorada, um filho. Joel ajuda o pai na orientação do seu negócio de família e conduz um carro adaptado às suas limitações físicas e que, não sendo o seu Ford Taunus vemelho de 1964, cuja foto me mostra orgulhoso no seu telemóvel, e que ele religiosamente guarda como preciosidade, dá-lhe contudo a autonomia que o faz sentir gente.

    Felizmente para ele que tem um pai e uma mãe – Lurdes, que de olhos cansados me diz que o seu único filho não era assim e não compreende porque a vida surpreende tanto as pessoas – e sofrem porque se assustam quando pensam quem amará tanto o seu filho ao ponto de ficar ao lado dele quando eles já cá não puderem ficar.

    Isso “transporta-me” no tempo e eu recuo a todas as pessoas que conheço e que são cuidadoras de alguém – as pessoas que vivem dentro de si mesmas numa terra de sonhos “Neverland”, reinos onde ninguém consegue entrar como aquele onde vive uma autista profunda, que tem uma mãe que não conseguiu entregar a sua filha, atualmente com 21 anos, ao cuidado definitivo de uma instituição porque se preocupava sobre quem havia de lhe fazer “coceguinhas” nos pés para a acalmar de noite.

    Foto ARQUIVO GL
    Foto ARQUIVO GL
    Depois lembro-me de uma amiga que, aos 37 anos, precisou de despedir-se da vida e só na véspera é que me estendeu a mão e me disse: «– Glória, não me deixes partir porque tenho as minhas filhas para cuidar!», e aqui caiu por terra a minha filosofia de que tudo tem solução, tudo se há-de arranjar – completamente impotente, nada pude fazer para a prender cá deste lado, e as filhas – que na altura tinham 14 e 8 anos – tiveram que ficar abrigadas no amor dos avós, que o povo diz serem “pais duas vezes” e que por terem vivido mais tempo amam e sofrem pelo passado, pelo presente e pelo futuro.

    Recuando ainda mais no tempo lembro-me de uma colega de trabalho me ter vindo comunicar o falecimento de um sobrinho com 11 anos, e que sempre foi um menino acamado que precisou de cuidados intensivos da sua mãe, e quando usei as palavras que todos usamos nestas situações – foi melhor assim, acabou o sofrimento de quem parte e de quem fica cá e foi cuidador, a resposta que recebi, a minha grande lição: «– Não D.ª Glória, porque quem cuida de pessoas assim tem que amar no dobro e também sofre em dobro a sua perda!».

    Com a vida eu percebi que isso é mais que verdade, e mesmo sem ser por incapacidade física ou mental, cada vez vejo mais gente que devia ter sempre os pais vivos, aqueles que os amam acima de tudo, acima de todos.

    E por ser fã incondicional dos transportes públicos a vida permite cruzar-me com milhares de pessoas e muitas delas sentam-se ao nosso lado e “falam”, como uma senhora que me mostrava uma foto de quando era jovem, muito bonita (e ainda hoje continua bonita como fiz questão de lhe dizer). Explicava-me que frequentava o hospital de dia na área da psiquiatria – o local onde se sentia bem porque também era onde se sentia amparada, por uma “família” que não tinha, para a ajudar numa recuperação lenta de uma doença mental que nunca mais a abandona e que a incapacitou aos 55 anos.

    Depois e muitas vezes o autocarro é “invadido” por meninos já adultos que padecem de trissomia 21 e que, alegres, dizem bom dia! ao motorista e depois, entre eles, riem das brincadeiras que só eles compreendem e partilham entre si, e depois têm os pais e mães que os esperam nas paragens, assegurando que não se desviam do seu caminho para casa.

    Temos também os meninos e as meninas já grandes, já adultos, que os pais teimam em tentar agarrar-se a alguma fraqueza ou desvio do seu próprio padrão que eles previamente instituíram e que sinalizam como os “pontos fracos”, aqueles que lhes dão acesso ao “controlo”, que sufoca.

    A fronteira será sempre muito ténue entre aquilo que entendermos como amor, controlo ou dependência e este é seguramente o exercício mais difícil que os pais enfrentam – o medo de deixarem de ser precisos, de deixarem de ser amados, o que, por vezes, nos tira a racionalidade de percebermos que são só diferentes formas de amor e que funcionam como o puzzle da vida, aquele que terá a forma e o encaixe que cada um lhe quiser dar.

    Há efetivamente tipos de filhos que não se podem “emprestar” ou “dar”, porque ninguém os consegue amar tanto como os pais que aqui precisam representar os difíceis papeis de Peter Pan num reino que não é da fantasia, porque falamos da vida, falamos de seres humanos, falamos de estigma, falamos de intolerância com a diferença, falamos de dependência, de paciência, de amor incondicional.

    Contudo, temos também aqueles pais que pensam ter ainda sentados no seu regaço os seus filhos, muitos deles já bem adultos e que não sabem bem como prender a sua vontade de voar atrás do seu sonho e do seu ideal de vida. Dificilmente sentem ou compreendem que, por vezes, esses filhos só lá estão porque precisam de cuidar das suas avezinhas, que os prendem a uma vida que nem sempre é a sua. Aqui temos a ajuda preciosa da fada Sininho, que se pode ver retratada nos seus olhos e que voa por eles na procura desse reino mágico da “Terra do Nunca” onde todos são de condição igual, onde ninguém precisa fingir para si mesmo e para os outros, onde todos são verdadeiramente felizes e onde todos vivem para sempre!

    Por: Glória Leitão

     

     

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