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    Arquivo: Edição de 29-02-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    As molinhas da Matilde

    Em alguns tipos de trabalho e pela existência de cargos que ocupamos a entrega, se não é no princípio, depois vai crescendo ao ponto de vestirmos a camisola e depois, transpirada, deixarmo-la secar no corpo e nunca mais a tirarmos, e aqui a buzzword que se aplica é workaholic, que em Português se traduz em “viciado em trabalho” ou, um sinal de perigo eminente para deixarmos de ter vida própria.

    Ouço muitas vezes dizer que nós não nos fazemos e somos como somos, mas nunca será neste caso em que está na nossa mão mudar o rumo das coisas, organizando as nossas prioridades.

    Também, e se refletirmos, chegamos à conclusão que, na atualidade e com tendência a ser cada vez mais comum, mesmo não se sendo um workaholic a flexibilização de legislação laboral, a eminência do desemprego que paira sobre a cabeça de todos nós, obriga ao cumprimento de horários e um tipo de entrega às empresas que também nos tiram vida própria.

    Para pais que trabalham e quando temos filhos pequenos isso é penalizador, porque quase nunca assistimos aos seus primeiros passos, às suas primeiras sílabas, ao seu primeiro dentinho e tantas outras coisas que podem ser enumeradas. Quase sempre essa novidade é-nos transmitida pela ama, pela cuidadora no infantário ou, com mais sorte, pela avó.

    Eu, como tantas outras mães e pais, trabalhei e abdiquei destes momentos, apesar de ter tido sempre a preocupação de deixar as minhas filhas ao cuidado de gente que as amasse e protegesse e também eu dava a justificação que todos damos quando de manhã nos perguntam onde vamos: «Ganhar tostões», e penso que é aqui que os nossos filhos começam a perceber que tostões são mesmo muito importantes, mais importantes que eles e o amor que querem de nós quando nos pedem: «Não vás trabalhar e fica comigo!», pelo menos penso que deve ser o que lhes passa pela sua pequenina cabeça.

    Com a capacidade que temos de registar os episódios marcantes da nossa vida, nunca esqueço um dia que não fui trabalhar e fiz uma surpresa à minha filha mais nova indo ter com ela ao recreio da escola. Ela nem acreditava que me estava a ver ali, junto à rede, chamou os coleguinhas e dizia-lhes : «Esta é a minha mãe, vês como eu tenho uma mãe?!». Olhei para os lados e estavam lá muitas mães, e avós, que tinham a felicidade de ter por hábito ir visitar estas pequenas aves.

    A par de um crescimento normal e natural das minhas filhas, foram nascendo e crescendo sobrinhos, 17, que são o meu orgulho.

    Em sociedade costuma dizer-se que quando as coisas nos correm mal é que conhecemos os nossos amigos e eu vivi isso na pele e efetivamente foi isso que aconteceu pois no momento, naquele momento, fiquei assustada, doente e só, de amigos.

    Nessa fase precisei de dizer aos meus sobrinhos mais novos que a partir dali não poderia dar--lhes mais a prendinha dos anos ou a lembrança do Natal e eles responderam-me prontamente: «Não faz mal tia, nós gostamos na mesma de ti», e abraçaram-me, de uma forma que nunca mais esquecemos.

    E gostam, acho que até mais e passados cinco anos deste episódio ainda hoje lhes sinto o espírito protetor, dos mais novos, que são mais expansivos, e dos mais velhos que, mais silenciosos, estão sempre atentos, carinhosos e amigos.

    Foto GLÓRIA LEITÃO
    Foto GLÓRIA LEITÃO
    Com as minhas filhas já adultas, ao ponto de a mais velha ser já mãe de uma filha, e se adicionar a isto àquilo que já escrevi num testemunho – a minha filha mais velha ter vindo em meu auxílio no momento em que precisava de ajuda dizendo-me: «Mãe, não vim para te julgar, vim para te ajudar», o que a mais nova que me disse um dia do que sentia e sente: «Tu és a melhor mãe do mundo», eu deixei ter o sentimento de culpa de as “ter abandonado”, trabalhando.

    Agora, que cresceu toda a gente, começava a sentir falta dos meus “miúdos”, que deixaram de passar tanto cá por casa, ainda mais que, quando o faziam, adoravam envolver-me nas suas atividades: jogar futebol, andar de bicicleta, jogar ao loto, e ensinar-me a jogar playstation, ou numa cumplicidade muito nossa, espreitar as traquinices que conheciam do youtube, em que adoravam ouvir as minhas gargalhadas. Também me faziam perguntas incómodas a que tinha dificuldade em responder tipo: «Tia, lá na tua faculdade também tens a disciplina Estudo do Meio? És boa a Matemática? Como são as tuas notas? Como se chamam os teus melhores amigos?».

    Voaram as minhas avezinhas, num processo normal de crescimento, deles e meu também, e de repente surge-me a necessidade de entrar neste part time que arranjei e que me faz integrar uma equipa de “miúdos” na sua grande maioria entre os 18 e os 25 anos, alegres, irreverentes e que não se inibem de exteriorizar tudo o que é normal em jovens do tempo de hoje e que não são nada inconsequentes, nem irresponsáveis, nem imaturos – são só jovens que têm toda uma vida para viver, filhos e sobrinhos de alguém.

    Quando pensava que a vida me tinha oferecido a compensação para a falta que sentia da minha “canalhada”, eis que senão me surge a pequena Matilde, filha da minha colega de trabalho Géni e que começou o seu primeiro ano de escolaridade na escola primária que fica a 200 metros do nosso local de trabalho, nas Saibreiras.

    A pequena Matilde é nossa visita de gabinete logo pela manhã, com a pasta aos ombros, uma pequena guerreira que simboliza todas as crianças que dão os primeiros passos numa vida que irão marcá-los para sempre: o começo da sua aprendizagem, voar através dos livros que os levarão longe, se a vida assim o permitir.

    Com isto, a vida presenteou-me com mais um sinal, aqueles que me andam a ser colocados no caminho – poder voltar ao passado da infância das minhas filhas quando na hora de almoço vamos visitar a pequena Matilde ao recreio e os miúdos vêm a correr e através da rede ficam ali a falar connosco, contando-nos as suas brincadeiras e também o que estão a aprender na escola.

    À despedida, numa troca de beijos da Matilde com a sua mãe, feita também através da rede e que os outros meninos exigem também para si, a Géni, solícita, corresponde a todos, compensando-os e porque sabe e sente que eles não podem ter ali as suas mães ou os seus pais, que trabalham longe da escola, não podendo partilhar destes momentos que a vida me devolveu através do rosto de outros meninos.

    Ao encontrar em casa umas molinhas de plástico próprias para segurar papéis lembrei-me de as levar para a menina que, de cabelos ondulados, me faz lembrar a minha filha mais velha, e bastou escrever lá o seu nome para ver brilhar a magia dos seus olhinhos, e também as quis distribuir pelos seus amigos e fiquei contente, porque ela ditava-me os nomes que queria lá escritos e eram muitos, felizmente para ela.

    Dividir molinhas, dividir um pão a meias no recreio, convidar amigos para partilhar brincadeiras, ir junto do colega que cai, ajudando-o a levantar-se e perguntando-lhe se está bem, preocupar-se em secar lágrimas de colegas como vi fazer através daquela rede, são sementinhas de uma amizade que espero te acompanhem ao longo da vida, pequena Matilde!

    Por: Glória Leitão

     

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