Tradição carnavalesca do Enterro do João voltou a animar povo de Ermesinde
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Foto MANUEL VALDREZ |
Uma multidão que se espalhava pelas margens do Leça, pela ponte da Travagem e pela Rua da Bela, junto à ponte ferroviária da Linha do Minho sobre o rio, marcou na passada terça-feira, dia 21 de fevereiro, a noite de Carnaval em Ermesinde, com um grande e inesperado sucesso deste reviver de uma das mais interessantes manifestações da cultura popular local. Foi este o epílogo de uma realização, este ano de responsabilidade da Junta de Freguesia de Ermesinde, que teve o seu primeiro ato no domingo, junto à estação ferroviária de Ermesinde, com a chegada, à tarde, do corpo do João à cidade – depois acompanhado de cortejo “fúnebre” até ao largo da feira velha para um primeiro velório – e que, na noite de segunda feira, teve ainda ali a continuação do velório da véspera.
Após cerca de uma década de interregno – o jornal “A Voz de Ermesinde” retratou, em reportagem, textual e fotográfica, o evento realizado nos anos de 2001 e 2002 –, não se esperava uma tão grande adesão popular ao relançamento da festa. Este sucesso em muito se deve à forma como a autarquia local se rodeou de várias das coletividades locais para levar a festa avante, entre elas a Associação Académica e Cultural de Ermesinde (AACE), a União Desportiva da Bela, a União Desportiva e Recreativa da Formiga (UDRF), a Casa do Povo de Ermesinde e a Associação para o Desenvolvimento Integrado da Cidade de Ermesinde (ADICE) e os Bombeiros Voluntários de Ermesinde, e que nos desculpem todos os esquecidos, seja por nós seja pela organização. Estas coletividades não só ajudaram a realizar o evento com as suas competências humanas, apoiando as várias fases da festa, dando massa e colorido ao cortejo de mascarados, trazendo os cabeçudos, dando corpo ao João, como ainda, e talvez principalmente, ajudando a multiplicar a notícia da festa, que correu veloz nas veias do corpo vivo da cidade de Ermesinde.
Agradecimentos maiores ao senhor Magalhães e a Maria Teles (Rambóia), detentores da memória desta dramaturgia popular, ameaçada de desaparecimento e, tal como as deixas o tornavam bem explícito, ao já desaparecido Abílio Teles (Rambóia), oficiante principal de toda esta celebração anual durante muitos e muitos anos e que deixou nas mãos da sua irmã Maria a mesma paixão de não deixar morrer esta representação tão genuína e interessante da criatividade popular.
Luís Ramalho, presidente da Junta de Freguesia de Ermesinde estava, ele próprio surpreendido pela grande adesão popular que o evento registou e, nesse sentido, não lamentava os quatro mil euros de orçamento que este ano a festa consumiu, tal o potencial evidenciado e que o levou, inclusive, a prometer, de antemão, que o Enterro do João do próximo ano será ainda mais memorável.
Por outro lado é necessário refletir sobre as vantagens e desvantagens da realização dos vários atos da festa nas margens do Leça, num enquadramento apertado entre as pontes rodoviária e ferroviária sobre o Leça, a primeira transformada num dos palcos, local tradicional do festejo, e as possibilidades abertas pela proximidade do amplo largo da feira velha de Ermesinde, mas também ele limitado pela proximidade do Lar da 3ª idade de S. Lourenço, do Centro Social de Ermesinde.
REPAROS
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Foto MANUEL VALDREZ |
Se o impulso da Junta de Freguesia de Ermesinde se revelou crucial para a ressurreição da festa, e nesse sentido a Junta merece todo o nosso apoio, já temos dúvidas acerca do facto de que, além do principal impulsionador e até mentor, se ter tornado também protagonista, criando-se aqui uma atmosfera favorável ao crescimento de algumas tentações promíscuas no que respeita à notoriedade da festa e dos seus personagens, reais ou fictícios, e a notoriedade dos atores que intervêm no campo político. Tal poderia ser uma tentação populista tendente a traduzir-se em bons resultados junto do eleitorado, mas que deverá ser afastada pelos mais elementares motivos éticos, e estamos em crer que tal será compreendido e evitado em próximas edições.
Uma outra questão que queríamos abordar era precisamente a da criatividade e espírito crítico popular e, sobretudo, a questão dos limites da tensão lúdica carnavalesca desta folia.
Manifestação popular oriunda da criatividade da gente mais pobre de Ermesinde, moradora no lugar da Bela, a tradição assentava em grande parte numa sátira picaresca e brejeira, contendo excessos de linguagem vernácula que representam uma espécie de catarse do próprio sentimento popular de marginalidade em relação ao sucesso de outros, e tentar adoçar ou tornar rombo este palavreado afiado é destruir, em grande parte, o seu carácter genuíno e tentar domesticar o que até aqui era livre e, por isso mesmo, interessante. Essa é outra das tentações a que se deve resistir.
Sem deixar, todavia, de referir que essa expressão da mentalidade popular também pode parir expressões da mais infeliz xenofobia... mas isso só poderá ser contrariado a um nível mais profundo e demorado, que envolva uma preocupação de educação para a cidadania.
Aliada à primeira das tentações que referimos, e dela derivando, surge uma outra brecha por onde se pode escoar esta criatividade popular, é que dada a proximidade dos elementos ligados ao poder (autárquico, neste caso), pode criar-se uma espécie de barreira (psicológica ou outra) que torne muito mais difícil o exercício da crítica livre a estas mesmas entidades, branqueando convenientemente o exercício do poder e cerceando a crítica que, mesmo injusta, deve ter todo o livre curso para se exprimir.
Finalmente, e num último reparo: partindo daquilo que já era uma prática antiga do Enterro do João, cujas deixas gratificavam aqueles comércios que tinham permitido levar a celebração a cabo, também este ano as deixas mencionam várias empresas e negócios que, presume-se, terão contribuído para a sua realização. Mas esta forma de agradecimento, se antes, pela sua pequena esfera, quase passava despercebida, hoje, pela sua dimensão, ameaçam tornar as deixas numa mixórdia de criatividade popular com publicidade pouco encapotada, destruindo por completo o que de mais interessante podia ter a festa. Não haverá maneira de evitar esta contaminação, encaminhando a gratidão aos patrocinadores para outro espaço e formas de expressão?
A TRADIÇÃO DAS DEIXAS
Nas deixas do João do ano de 2001, a quadra inicial rezava assim:
«Se há funeral cá em Ermesinde
Do nosso amigo João
Podem agradecer ao Sr. Abílio
Porque ele não ganha tostão».
E este era um agradecimento inteiramente merecido, que as deixas deste ano vieram aliás, corroborar:
«Se há funeral cá em Ermesinde
Do nosso amigo João
Agradecemos ao sr. Abílio
Que os fez sem um tostão».
O lugar da Bela tinha, nessas deixas, um lugar privilegiado, sendo o único lugar de Ermesinde citado no evento:
«Para o lugar da Bela
É um sítio que enriqueceu
Deixou 5 mil contos para fazer um tanque
Porque a Junta já se esqueceu».
Se é verdade que esta quadra se mantém, este ano a referência aos vários lugares de Ermesinde surge muito mais ampliada, como pode apreciar-se nas várias quadras a tal dedicadas, grande parte delas, com o tal sentido brejeiro próprio deste tipo de celebrações carnavalescas:
«Deixo às moças da Bela
O que penso de repente
As minhas tesouras de poda
Para fazerem a permanente.
Deixo às moças da Travagem
Por estarem em segundo lugar
Sete arrobas de sabão
Para se poderem lavar.
Deixo às moças de Vilar
Por morarem lá no altinho
Deixo todas as minhas calças
Para ninguém lhes ver o ninho.
Deixo às moças das Malvinas
Por terem línguas de prata
Deixo mil cabos de sacholas
Para ajudar na zaragata.
Deixo às moças da Feira
Por ficarem perto da Maia
Deixo-lhes cuecas de linho
Para usarem mini-saia.
Deixo às moças sozinhas
Por serem das últimas a falar
200 salpicões bem grossos
Para se poderem consolar.
Para as moças do lugar dos Moinhos
Por morarem junto à antiga feira
Deixo as minhas canastras
Para irem vender peixe para a feira.
Deixo à moças da Ermida
Porque vem mesmo a calhar
Deixo o meu quarto de banho
Para se poderem lavar.
Deixo às moças da Santa Rita
Porque isso é bom saber
Deixo-lhes a minha potente mangueira
Para quando estiverem a arder.
Deixo às moças da Palmilheira
Por serem das mais modernas
7 mil pacotes de Tide
Para lavarem as pernas.
E não me esqueci
Das moças da Formiga
Deixo-lhes 500 camisas sem mangas
Para não inchar a barriga.
Deixo às raparigas de S. Paio
Por estarem perto de Ardegães
Para passearem ao domingo
300 trelas de cães.
Deixo às moças da Costa
Isso é que acho lindo
A minha caixa de graxa
Para engraxar ao domingo».
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Foto MANUEL VALDREZ |
E mantêm-se as tradicionais quadras com as deixas ao padre e à igreja, à polícia, aos bombeiros, ao lar de idosos e à tradicional rivalidade de Ermesinde e Valongo, mas também agora a algumas reivindicações da cidade:
«Para a nossa igreja
Também quero deixar
Deixo 500 mil euros
Para o telhado arranjar.
Deixo para o rio Leça
Peixes e mais vantagens
Que são 100 mil euros
Para limpar as margens?
Para os mais barbudos
E em vez de beberem
Deixo-lhes a máquina de cortar mato
Para a barba desfazerem.
E para a nossa polícia
Por estarmos em liberdade
Podem continuar de férias
Para os ladrões roubarem à vontade.
Ao abrir estes responsos
Pois o juiz não erra
Deixo 1 milhão de euros
Aos bombeiros da nossa terra.
E nesta época de crise
Deixo medicamentos para as demências
Tirem o gasóleo da limusina
E ponham-no nas ambulâncias.
Por ser lar dos idosos
Desses não me esqueceria
Deixo mais 2 milhões de euros
Para dar ao centro de dia.
Para a Câmara Municipal
Deixo o pedido ao Sr. Presidente
Que não gaste o dinheiro só em Valongo
Porque em Ermesinde é que há gente.
Para o lugar da Bela
Que é um sitio que enriqueceu
Deixo 50 mil euros para fazer um tanque
Porque a Junta já se esqueceu.
Deixo ao padre de Ermesinde
Por ser dele que a gente gosta
Fica com o meu trator
Para acompanhar os funerais à Costa.
E para alguns ex-combatentes
Que andam cheios de saudade
Deixo-lhes a matumbina
Para usarem à vontade.
(...)
Deixo 2 milhões de euros à Junta
Por ser gente de valia
Para arranjar e limpar as ruas da cidade
Que à Câmara competia
Deixo para alguns vereadores
Do bom senso a semente
Porque pensam que só é Câmara
Quando está toda a gente
E todos os objetos que deixei
De arte e é tudo meu
Só virão para Ermesinde
Quando a cidade tiver museu
Deixo a decisão ao povo
Que Valongo não leve a mal
Mas só com Câmara em Ermesinde
Haverá iluminação no Natal
Por isso ao comércio da terra
Deixo um pedido sentido
Ajudem o enterro do João
E o povo será vosso amigo
E para alguma oposição
Uma oferta de esperar
Deixo indicações secretas
De onde as árvores plantar
Não queremos Santa Engrácia
Aqui manda S. Lourenço
Pode até não ser verdade
Mas é assim que eu penso
Por isso meus senhores
Deixem só de pensar
Obras no mercado e na feira velha
Já deviam começar».
O final, apoteótico, foi assim este ano:
«E agora prestem todos atenção
Não vale a pena a chorar
Pois queiram ou não queiram
O João vai acabar.
Agora ninguém arrede pé
Isto não é nenhum engano
Só peço a Deus que estejamos
Aqui todos para o ano.
E para não haver confusão
Em vez de ser enterrado
Porque não quero estar frio
A minha vontade é ser cremado».
A «Vida do João”
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Foto URSULA ZANGGER |
Nas quadras relativas à vida do João surgem alguns elementos muito curiosos, que ajudam a situar a origem da tradição ou da cultura subjacente a esta:
«Boas noites meus senhores
Voltamos à tradição
De fazermos o funeral
Ao nosso amigo João.
Meus senhores e minhas senhoras
Aqui vos vou dizer
A vida que o João passou
Enquanto andou a viver.
Em Lisboa foi nascido
No Porto foi baptizado
A sua mãe deixou-o à roda
Com o nome de João Bastardo.
Em Bragança foi criado
Em Foz Coa funileiro
Em Coimbra tirou um curso
Veio para o Porto para caixeiro.
Foi trabalhar para o Pinhão
Não lhe agradou a oficina
Concorreu para escrivão
E foi engenheiro em Albina.
(as deixas oficiais deste ano registam Albina, mas será, mais provavelmente, Alfena?)
Delegado em Vila Flor
Juiz de direito em Aveiro
Em Viana foi ferrador
E em Chaves serralheiro.
Em Guimarães foi padeiro
Em Moncorvo maquinista
Na Régua foi pedreiro
E em Setúbal foi dentista.
Capitão em Badajoz
Em Vila Real ajudante
Em Lamego foi tenente
E em Braga comandante.
A Angola foi parar
E em Luanda viveu
Foi por lá que ficou rico
Mas foi cá que morreu.
Tantas artes que ele teve
E viveu de tantos modos
Para que tanta riqueza
Pois morreu como todos.
Gozou mulheres a mais
E sem criar um filho
Agora nas suas finais
Foi metido num sarilho».
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Foto URSULA ZANGGER |
Há uma evidente sobrecarga dos topónimos do Norte e, em particular, de Trás-os-Montes.
Num exercício de mera especulação, poderá apontar-se como transmontana a origem de alguns dos oficiantes mais destacados deste Enterro do João, que provavelmente terão estado na guerra colonial (em Angola?), ou sido colonos em África.
Não nos atrevemos é a apontar uma tradição do Enterro do João, Queima do Judas ou festas semelhantes, como transmontanas, embora seja possível que, dado algum isolamento das terras para além do Marão, por lá subsistam mais duradouramente algumas destas festas pagãs.
Sabe-se que prantos fúnebres carnavalescos vêm já de tempos medievais, sabe-se que muitos deles são celebrações de quaresma, muitas vezes pontuadas pela apoteose do fogo, sabe-se que não se trata de uma celebração unicamente portuguesa, encontrando-se espalhadas por toda a Europa celebrações carnavalescas semelhantes.
O CASO DE ERMESINDE
Mas a configuração particular do Enterro do João em Ermesinde parece apontar noutro sentido mais específico.
No seu livro “Ermesinde: Memórias da Nossa Gente”, Jacinto Soares, referindo-se ao enterro do João, desenvolve uma tese muito interessante. Entre outras coisas, cita o estudo de Ernesto Veiga de Oliveira, que a este assunto dedicou um trabalho: «Sobre a realização da festa nos lugares da Triana, Carreiros e Forno (Rio Tinto), [Ernesto Veiga de Oliveira] aproveita para referir que a mesma tem igual dimensão e sentidos nos seus arredores (Vale Ferreiros, Venda Nova e Baguim), também do concelho de Gondomar; nos lugares de Granja, Giesta – S. Gemil, Brás Oleiro e Pedrouços, ligados a Águas Santas e na nossa terra é referido Vilar, Palmilheira, Travagem e lugar de Ermesinde. Na sua opinião “tratar-se-ia de uma faixa entre a vertente sul dos contrafortes ocidentais da serra de Valongo e os limites administrativos do Porto, correspondendo aproximadamente ao extremo sudeste das Terras da Maia, com um carácter acentuado de subúrbio do Porto e muito visivelmente compreendida na sua esfera de influência” (...). Manuel Pinto para quem “no desenrolar dos passos desta estranha liturgia é perfeitamente notória a intenção de parodiar o sagrado”, adianta, seguindo este mesmo estudo, três interpretações para esta manifestação da cultura popular: “A criação de um bode expiatório da comunidade; a manifestação do espírito lúdico e do poder imaginativo do homem e corporização do seu sentido parodial e, por último, um rito de passagem que introduz o jejum quaresmal”».
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Foto URSULA ZANGGER |
Jacinto Soares, rejeitando esta última linha de interpretação aponta, a seguir, para o caso de Ermesinde, que conhece melhor: «Podemos afirmar que estamos perante questões de rutura social, de contestação ao “status quo”, de criação de um bode expiatório, sobre o qual é preciso zurzir de uma forma disfarçada. Este “bombo da festa” representa o grupo social a quem eles e mesmo os seus progenitores, estiveram ligados no passado, mas que por razões de vária ordem, entre as quais afetivas, não podem criticar diretamente. Resquícios inconscientes de tudo o que havia de bom nesse passado, ainda não muito longínquo, sobretudo a mesa, são geradores de sentimentos negativos ligados à inveja, a um saudosismo não assumido e mesmo a um compreensível complexo de afirmação social.
Não nos podemos esquecer que essas zonas, onde a paródia acontecia, circundavam as “aldeias dos lavradores”, casas fartas, onde eles ou os seus familiares trabalharam, antes de abalarem para outro rumo, neste caso, o mundo ligado á indústria. Muitos destes “críticos” eram descendentes dos criados de servir (moços de servir), a quem votavam agora um certo desdém que se manifestava, exteriormente, por esta via da festa (…). Não é por acaso que são os lavradores ricos, ingénuos, gananciosos ou liberais em demasia, os protagonistas dos versos do testamento do João.
Em Ermesinde, esta tradição, nos moldes em que a entendemos hoje, remonta aos fins do século XIX, e está ligada à passagem primeiro dos homens e das mulheres depois, para as fábricas que a Revolução Industrial acabava de trazer para a nossa terra».
Por:
LC
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