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    Arquivo: Edição de 09-02-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    CRÓNICAS DE LISBOA

    O meu barbeiro e o Titanic

    Foto Arquivo URSULA ZANGGER
    Foto Arquivo URSULA ZANGGER
    Confesso que sentar-me na cadeira do barbeiro, para que me corte o cabelo, sempre foi algo de que nunca gostei. Mas ali, sentado ou enquanto se espera por vez, pode-se ouvir falar de tudo, pois o português de tudo sabe e sobretudo gosta de dar opiniões ou mesmo fazer violentas críticas aos políticos, por vezes usando palavras pouco abonatórias para aqueles (ladrões, gatunos, etc.). Em tempos, tive um barbeiro onde as conversas, acaloradas com outros clientes, eram, essencialmente, sobre futebol e acabava eu por sair dali com a cabeça a doer, não pela ação do corte de cabelo, mas pelo vozeirão bem junto aos meus ouvidos. Depois, andei algum tempo por aqueles cabeleireiros/barbeiros dos centros comerciais, normalmente unissexo e com artífices também dos dois sexos. Aí, normalmente, não há tanta familiaridade, pelo que as conversas não fluem, assim mais ao meu gosto, pois, pessoalmente, nunca fui muito dado a conversas nas barbearias ou locais semelhantes, pois é impossível manter um diálogo. O português não gosta ou não sabe dialogar mas sim falar, falar.... sobre tudo e saltando de tema em tema.

    Há tempos, descobri um barbeiro tradicional, embora daqueles que acompanharam a evolução da arte e dos equipamentos, além disso praticando um “preço justo”, pelo que passei a frequentá-lo para os meus cortes de cabelo. Foi o que fiz esta semana e, logo na abertura, fui o primeiro cliente, pelo que durante o tempo de corte do cabelo estivemos apenas os dois no pequeno salão. Tínhamos, contudo, a companhia da televisão e que estava a reportar o naufrágio do paquete italiano “Costa Concórdia” (CC), pelo que a conversa do barbeiro, a que eu aderi, começou por aí e por aí se foi desenvolvendo até ao final da operação do corte do meu cabelo. Fiquei então a saber que ele já viajou no CC e é um apaixonado pelos cruzeiros neste tipo de barcos e que são autênticas cidades flutuantes, pois os armadores e construtores não param de os fazer crescer em tamanho e na oferta de lazer para passageiros, de variadas classes sociais. Aquilo é, de facto, inimaginável, dizia-me ele, a que ripostei dizendo-lhe que há anos eu tinha feito um pequeno cruzeiro num paquete um pouco mais antigo do que o CC, pelo que conhecia este tipo de “luxos”. Estava assim ele perante um conhecedor, mas foi relatando toda a sua experiência e gosto por este tipo de turismo, acrescentando que já reservou o lugar (para ele e a sua mulher) para um cruzeiro que fará na próxima primavera. Dissertámos ambos em torno do acidente do CC, pelo que o lembrei do naufrágio do Titanic e da fragilidade deste tipo de “monstros”, apesar de ter ocorrido muito tempo entre estes dois acidentes com grandes paquetes. O monstro (CC) só não foi rapidamente engolido pelas águas, porque o rochedo que foi a causa do acidente acabou por o “segurar” ali, embora adornado e, felizmente para as mais de quatro mil pessoas que o CC transportava (entre passageiros e tripulantes), o acidente aconteceu a poucas centenas de metros da costa, pelo que a evacuação pôde ser rápida. Afinal, aqueles navios são frágeis e demasiado grandes, dificultando as ações de salvamento, em caso de acidente. Imagine-se que um acidente com estes paquetes ocorre em alto mar e como se poderiam socorrer quatro milhares de pessoas? Não tendo sido muitas as mortes e os desaparecidos no acidente do CC, não deixou de ser um drama esta falha humana imputável ao comandante, conforme suspeita das autoridades e da empresa proprietária do navio. Aliás, os comandantes deste tipo de navios têm vindo a chamar a atenção dos armadores para o exagero (grandiosidade) destes barcos, mas a procura por este tipo de viagens continua em alta, alguns passageiros realizando o sonho de viverem alguns dias num “luxo babilónico”. É o exemplo do meu barbeiro que, em reforço da sua opinião, me sugeriu que eu, como reformado, deveria aproveitar os preços convidativos praticados na época baixa, mas respondi-lhe que aquele tipo de oferta luxuosa e em quantidade não fazia o meu género. Prefiro os cruzeiros no Rio Douro.

    Naquele dia, a nossa imprensa noticiava e dava relevo a um estudo feito sobre a economia paralela no nosso país. Entenda-se como aquela cujos agentes fogem aos impostos do IVA, do IRC, do IRS, da Segurança Social, etc., e que representa 24% do nosso PIB. É óbvio que o estudo citado não trouxe nada que já não soubéssemos, mas levou-me a pensar no diálogo travado com o meu barbeiro, nessa manhã, e no seu gosto por férias de rico!

    Por: Serafim Marques (*)

    (*) Economista

     

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