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    Arquivo: Edição de 15-10-2011

    SECÇÃO: Música


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    Sansão e Dalila – ópera francesa do século XIX

    Dia 30 de Setembro tive a oportunidade de assistir no grandioso palco do Coliseu do Porto ao espectáculo de estreia da ópera Sansão e Dalila, do compositor francês Camille Saint-Saëns. Ópera em três actos com libreto em francês do também poeta Ferdinand Lemaire (1832-1879), crioulo que haveria de se casar com um primo da mulher de Saint-Saëns; este tinha musicado anteriormente dois dos seus poemas, "Souvenance" e "Tristesse", para voz e piano. Abordado pelo compositor para escrever uma oratória sobre a história de Sansão e Dalila, Lemaire concordou, mas somente se o trabalho resultasse na estrutura de uma ópera.

    A sua estreia mundial aconteceu em Weimar (Alemanha), no Hoftheater em Dezembro de 1877, pelo seu grande amigo compositor, pianista e maestro húngaro Franz Liszt numa tradução para alemão: uma suprema ironia por um lado, porque a obra não tinha suscitado interesse em França, por outro porque desde muito cedo que Camille Saint-Saëns ia publicando artigos de reflexão sobre a música criada e apresentada no seu tempo, onde (e cito o programa do Coliseu do Porto) ia "odiando alegremente e de forma positiva muita da música francesa de Franck, Ravel e Debussy, a par de toda a música italiana e alemã"!

    As personagens e seus respectivos intérpretes foram os seguintes:

    Sansão - Carlos Guilherme, tenor

    Dalila - Giovanna Lanza, meio-soprano

    Sumo-Sacerdote de Dagom (Dagom - Deus dos filisteus) - Federico Longhi, barítono

    Abimeleque - Bruno Pereira, baixo-barítono

    Ancião Hebreu - Pablo Atahualpa, barítono

    Mensageiro Filisteu - Victor Hugo de la Rosa, tenor

    1º Filisteu - Juan Carlos Zamora, tenor

    2º Filisteu - Miguel Sagrero barítono

    Figuração da Morte - Bailarina Francesca Zaccaria

    Coro da Companhia de Ópera do Porto

    Teve encenação de Giulio Ciabatti e como Maestro da Orquestra do Norte e direcção musical, José Ferreira Lobo.

    Poderemos sintetizar a história num pensamento: um homem, cuja força residia no seu cabelo abençoado por Deus à nascença, era forte o suficiente para derrotar os inimigos do seu povo de Israel, os filisteus, mas não o suficiente para resistir à malícia de uma mulher, uma mulher filistéia com o maior ódio de estimação pelos hebreus e que, pelo seu charme e poder de sedução, lhe corta o cabelo à traição, tirando-lhe o poder.

    Gostaria de referir algumas impressões sobre o que vi e ouvi, primeiramente sobre o ensaio geral aberto à imprensa, no dia anterior.

    Foi possível reconhecer um ambiente descontraído entre os membros do coro, um grande à-vontade na maneira como o maestro se dirigia aos músicos da orquestra e aos cantores, nas suas respectivas entradas.

    PINTURA GUERCINO
    PINTURA GUERCINO
    Ora, entradas essas que foram um grande problema, levando à interrupção do ensaio por diversas vezes. Isto normalmente não acontece pois, tratando-se de um ensaio geral, tenta-se tocar a obra como se da estreia se tratasse. Torna-se evidente, no entanto, que as questões de posicionamento dos elementos do coro devem ser treinadas e ajudadas pelo director de cena, levando à necessidade de todos estarem de corpo e alma no ensaio.

    Mas o maestro sentiu a obrigação de interromper. Uma vez por falta de sincronização da entrada de Abimeleque em palco com a orquestra, já que o primeiro mostrou uma visão diferente da articulação das palavras e da forma mais directa daquela demonstrada nos outros ensaios - informação recolhida em conversa com o baixo-barítono num dos intervalos.

    Outro ponto de discórdia aconteceu no 2º acto, quando Sansão tem várias vezes a fala de uma emotividade, tensão e carga simbólica tais que só as palavras "Dalila, Dalila, je t'aime" (eu amo-te) podem ter.

    Das quatro vezes que esta declamação de amor aparece, nenhuma foi perfeita. É um momento bastante delicado e estas entradas nunca são iguais, dependem da posição de Sansão, da melhor forma de ver as indicações gestuais do maestro; a música é sempre diferente, tem de haver a sensação de crescendo por cada vez que aparece esta fala, um crescendo de paixão e de convicção.

    O Maestro decidia conversar com os cantores, Dalila e Sansão reposicionavam-se e repetiam. As correcções tiveram um excelente resultado não tanto no decorrer do ensaio (dado que cada paragem reforçava o cansaço) mas sim no dia seguinte, o da estreia, onde estes momentos foram irrepreensíveis.

    É de salientar que fica muito constrangida a tarefa de seja quem for que tenha de cantar numa ópera de noite depois de uma dia de trabalho como professor ou, muitas vezes, como encarregado de assuntos burocráticos que em nada ajudam a voz e o corpo a não se desgastarem, não havendo tempo para repouso, para melhor estudar as obras, para imergir mais nelas e assim darem o melhor, não só nas récitas mas também nos ensaios, para que não haja a necessidade de se "descansar" no dia anterior.

    Sobre o dia da estreia, aqui vão algumas das minhas considerações:

    Algo que se notou numa perspectiva geral mas mais ainda no primeiro acto, onde a acção se desenrola numa praça de Gaza, sob os pórticos do templo de Dagum, foi a pouca efusividade de Sansão, principalmente na sua entrada em palco. Esta foi de encontro com a orquestra, musicalmente falando, muito bem na afinação, com timbre que achei certo, com clareza na articulação, vontade de mostrar os seus argumentos, mas cenicamente um pouco exasperante: vê-lo sempre de braços junto ao corpo revelava pouca presença em palco com pouca ênfase na comunicação com o olhar direccionado para o público.

    O coro também pouco mexia e sempre como um bloco, muito respeitador das indicações dadas no ensaio geral a que já referi. Mas o coro foi excepcional a nível vocal, bem afinado, com variedade tímbrica a vir ao de cima (embora com pouca facilidade em terminarem todos ao mesmo tempo as suas partes), com grande gama de dinâmicas, bom rigor rítmico e também na articulação. É preciso vincar bem este aspecto da língua, já que é raro termos óperas em francês e geralmente esta é uma língua desprezada na forma de a ouvirmos como algo natural, maternal. Longe vai já o tempo em que o francês era a denominada "língua delicada" do canto, a par da "rainha italiana".

    A orquestra podia ter sido um pouco mais expedita nas partes que pediam um andamento mais rápido, mais veloz, mais lúgubre, mais aterrador, principalmente com a percussão. Mais força, mais loucura, mais arrebatamento. Nas partes mais lentas, foi perceptível uma doçura enternecedora nas cordas, as harpas com proeminência justificada, os sopros bem estruturados na forma aberta e larga, principalmente quando juntos com o coro. Adorei os momentos subtis e luxuriosos do primeiro violino no 2ºacto, pequenos momentos que fazem toda a diferença. O momento em que Dalila corta o cabelo a Sansão, dentro dos seus aposentos no vale de Sorek, é brutal, bem mostrado pela orquestra, o corte brusco teve um belo efeito, de suster a respiração.

    Tenho é de fazer um reparo, que foi notado por muita gente com quem pude falar à saída do Coliseu: o facto de não vermos uma diferença no volume de cabelo do 2º para o 3º acto é um "pormaior", é imprescindível termos a noção real, palpável/visual de que houve uma mudança radical. Ela é visível na roupa mas não no cabelo, exactamente igual! Nós já tínhamos tido a noção de que algo terrífico se tinha passado, faltava vermos a mudança.

    Sobre o guarda-roupa, esse foi muito fraco. Não deu para perceber em que época estávamos. Estávamos na época moderna porque Sansão usava gravata ou no mundo árabe das "mil e um noites" com os vestidos da criadas de Dalila, esta com seu vestido de só 2 cores? O coro demonstrava ser pobre, mas essa era a sua missão como povo em fome e em guerra.

    O jogo de luzes podia ter sido bem mais aproveitado, algo mais fantasmagórico, mais instável, principalmente na "dança da morte" do 3º acto. Esse foi o momento por que mais atentamente esperei, pelas óptimas indicações do ensaio geral. A aparição é introduzida pelo oboé. Fiquei de boca aberta com o calafrio que senti por ver uma bailarina tão magra e volátil nos seus movimentos, tão ágil com os seus braços. A sua face é "a cara da morte", a roupa é toda negra. A música lembra os cortejos de folclore espanhóis da Andaluzia, ou castanholas numa praça de touros do Alentejo, ou os esqueletos a dançar no deserto do Saara. Aterrador. Só visto. Aconselho a ouvir este excerto, chamado "Bacchanale" que só por si já vale ser tocado muitas vezes, como acontece, em extras de concertos de orquestras.

    Mas atenção, no meio há uma parte que mantém o frenesim através das flautas mas que entra noutro ambiente, a calma debaixo de um "sombrero".

    Dos outros cantores, gostei de quase todos eles. O que praticamente me passou ao lado foi o mensageiro dos filisteus, mas isso é culpa em parte da escrita pelo compositor, muito tremida e periclitante, como que demonstrando um medo exorbitante por dar uma notícia de que o inimigo reunia tropas.

    Por falar em ambientes, gostei imenso do público. Porque não entrou em loucuras de aplaudir a torto e a direito de cada vez que havia uma parte que corria bem (como tanto acontece nas óperas italianas), sem andar a tossir nem outros quejandos que só irritam quem assiste. Infelizmente, pelo menos no dia de estreia, não houve nem meia casa, para grande pena minha.Esta ópera merecia ter tido mais público e uma aclamação maior.

    Por: Filipe Cerqueira

     

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