Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 30-07-2011

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    A faina do verão

    Entrava junho e, pelas ribeiras, o feno atingira o limite de crescimento e maturação e ondulava, graciosamente, à brisa estival. Os lavradores avisados, por experiência própria e por herança de inúmeras gerações que os precederam, preparavam-se para a ceifa mesmo sem a consulta ao calendário ou às informações do Seringador. Gadanhas picadas de antemão e corno com a aguçadoura 1 mergulhada em água preso à cintura, dirigiam-se aos lameiros e, em movimentos largos e técnica apurada, iam prostrando a erva alta que ficaria a secar por uns dias, depois seria virada e, finalmente, transportada nos carros de bois aos palheiros onde ficaria em depósito, ao longo do ano, para manutenção dos animais de tiro. Constituía mesmo a base do seu sustento mas era de todo imprescindível no inverno quando a neve os impedia de saírem dos currais porque se tornava impossível recorrer a ferrã 2, nabos ou erva fresca para lhes variar a dieta.

    Gadanhas para os homens, às mulheres e aos mais jovens estavam destinadas as espalhadouras 3 que serviam para estender, no lameiro, o feno cortado, virá-lo passados alguns dias para expor a outra face à ação do sol, juntá-lo e erguê-lo para ser convenientemente posto no carro de bois, em geral por um homem experimentado no arranjo de carga.

    Neste como noutros trabalhos agrícolas, os homens não dispensavam o vinho, que levavam consigo em cabaças 4 ou pipos 5 e punham a refrescar em nascentes ou locais menos expostos à intensa canícula do verão. Além do trabalho que lhes era atribuído, a mulher ou um filho pequeno serviam-lhes a bebida a pequenos espaços. A agricultura tradicional não mecanizada exigia muitos braços, de tantos quantos o lavrador pudesse dispor dada a urgência e a quantidade de tarefas a cumprir. Nos dias que vivemos, pode parecer anátema o velho provérbio “trabalho de menino é pouco mas quem o despreza é louco”, uma vez que temos por adquirida a inadmissibilidade do trabalho infantil, todavia convém não perder de vista as circunstâncias que vigoraram no campo até meados do século XX.

    A ceifa, secagem e transporte do feno era o primeiro dos grandes trabalhos do estio, espécie de introito ao que viria mais adiante. Além do esforço físico, havia o incómodo da poeira que se desprendia dos caules secos, insinuava-se por dentro da roupa e colava-se a todos os poros amalgamada em suor, produzindo intensa comichão e mal-estar que se manifestava, sobretudo, ao nível das vias respiratórias pela dificuldade nas secreções. Felizmente, havia água nas poças, nos tanques e nas fontes para desobstruir as fossas nasais, a boca e a garganta e o que passava para o sistema digestivo era assimilado sem dificuldade ou prejuízo para a saúde.

    Recolhido o feno, já se avizinhava a ceifa do centeio, elemento indispensável à alimentação das nossas gentes. Dos prados húmidos às encostas e pequenos vales da serra valiam distâncias e asperezas, do nuclear transitava-se para o coletivo com recurso à torna-jeira 6 dentro da comunidade, por vezes ao ajuste com trabalhadores sazonais oriundos de zonas mais quentes onde os préstimos requeridos para si ou para outros já tinham tido lugar. Rumando a terras onde o cereal era mais tardego 7, estes homens podiam ganhar umas c’roas excedentes, particularmente bem-vindas naqueles anos do pós-guerra em que a vida era bastante difícil e escassos os proventos obtidos na atividade agrícola. Assim, entre a segunda quinzena de Junho e as primeiras semanas de Julho, a Praça do Mercado, onde a população de Bragança se abastecia de víveres, ganhava outra serventia e animação: camaradas 8 de segadores, de fouce à cintura e dedeiras de couro penduradas nos pulsos, tomavam conta do espaço circundante, à espera que os lavradores mais abastados das aldeias próximas os viessem contratar. Jeira combinada, seguiam o patrão diretamente para as leiras e lançavam-se ao trabalho com denodo e animação.

    O sol, que fizera germinar e desenvolver as culturas, resplendia no céu, cáustico e majestoso, a cobrar aos agricultores grossa maquia pelas benesses concedidas. Ao calor de abrasar juntava-se o pó libertado das hastes e das espigas e o flagelo da moscaria.

    Nessa época do ano, os dias são longos, há muitas horas entre os primeiros alvores e o pôr-do-sol. Esse trabalho, em si mesmo esgotante, tornava-se ainda mais duro porque, com a reverberação do sol, o tempo parecia ficar suspenso e não ter mais fim. Homens e mulheres participavam nele, lado a lado, e só a boa disposição permitia aguentar o esforço quase sobre-humano que se repetia há séculos. Entoavam-se canções de tempos idos, com letras da nossa tradição histórica, espécie de diálogo coral, em que as mulheres respondiam ao que os homens cantavam e havia um refrão comum aos dois sexos. Noutros momentos, homens e mulheres dirigiam-se comentários brejeiros, apimentados, muito ao gosto da nossa gente, sem nunca ultrapassarem o limite da decência.

    A jornada tinha intervalos coincidentes com as horas das refeições. Ainda não se tinham dissipado por completo as sombras da noite, já os trabalhadores matavam o bicho: carolo 9 de centeio, um cibo de presunto ou rodelas de salpicão, aguardente ou vinho segundo as preferências de cada trabalhador. Sensivelmente a meio da manhã, a dona da casa preparava a merenda, acondicionava-a numa cesta grande coberta com pano de linho, subia acima da burra com a cesta à sua frente e seguia para a faceira 10. A suspensão da atividade era curta, só o tempo indispensável para reaconchegar os estômagos dos trabalhadores que, de pronto, voltavam à labuta. Mais algum esforço e chegava a hora do almoço que, tal como a merenda, a patroa vinha trazer, servindo-se da jumenta. Além da cesta, transportava, nos alforges, tudo o que fosse preciso e não coubesse nela: pão, talheres, mais vinho, queijo, presunto, salpicão ou chouriça de carne, já a contar com a merenda a meio da tarde, assim evitando nova deslocação. O almoço era uma refeição mais abundante e substanciosa, degustada com maior vagar e seguida de repouso, em geral das 12 às 14 horas, calculadas pelo sol. Pelas cinco da tarde, mais uma curta interrupção para reabastecimento alimentar.

    Para os destros, as espigas que a mão esquerda pudesse abarcar eram cortadas rentes pelo golpe certeiro da seitoura empunhada na direita e colocadas no chão em pequenas gabelas 11. Dois ou três golpes, uma gabela, movimentos contínuos do corpo cadenciados, da esquerda para a direita e logo em sentido contrário, o tronco semierguido a cada talho para depositar a mão cheia de espigas, repetição dos mesmos movimentos dezenas, centenas de vezes; de quando em quando, o corpo levantado no intuito de endireitar a coluna e exercitar os músculos e logo o retomar dos mesmos gestos, o avanço dos pés a cada fouçada. Atrás dos segadores, vinham os atadores: estendiam no chão as vencelhas 12, juntavam gabelas em quantidade que lhes permitisse enchê-las e fazer o atilho segundo a técnica usual. Os atadores eram sempre em número bastante inferior ao dos ceifeiros, em regra um terço ou mesmo um quarto porque o seu trabalho, em condições normais, era mais rápido.

    Havia exceções como para todas as regras, atente-se no caso do tio Manuel Tôrdigo, lavrador meão de corpo e parco em desenvoltura, e da tia Maria Expedita, mulher de armas, enxuta de carnes e vivedeira como poucas, possuidores de uns bocadinhos que lhes permitiam vida desafogada mas sem arrojos. Não tiveram filhos o que, se, por um lado, lhes poupava trabalhos e preocupações, por outro lhes tornava a existência permanentemente magoada. Eram autossuficientes, se considerarmos apenas o lado material, faltando-lhes, todavia, a bonançosa inquietação que a voz do sangue permite vivenciar. Ao contrário do que é habitual, a tia Maria segava e o tio Manuel atava. Porém, era tal o desembaraço da mulher que o tio Manuel via-se em grande aperto para não criar distância entre eles. Tentava andar mais depressa sem viciar a execução, mas as mãos da mulher pareciam mágicas tal a ligeireza dos gestos. A certa altura, concluiu que não conseguia mesmo responder ao desafio e increpou-a na sua pronúncia característica em que o s tinha o som de ch:

    - Chenta-te um pouco, Maria! Rai’ quanto chegar!

    E que remédio teve a tia Maria senão ajudar o marido a atar o que ela tinha ceifado. No fim, fizeram a mornalheira 13.

    Mal terminada a segada do centeio, começava a do trigo. O centeio constituía a base da alimentação diária, o trigo era utilizado na confeção das alheiras, chouriças “de verde” feitas com a massa das alheiras a que se adicionava sangue de porco e chouriços ditos “de pão” com a massa das alheiras em tripa do intestino do porco. Era consumido em dias nomeados (de festa) ou quando se tinha visitas.

    O passo imediato era a acarreja, nome que se dava ao ato de transportar o cereal das terras para a eira onde se edificava uma meda de forma cónica que ali permanecia até à malha alguns dias depois. Nessa ocasião, a palha era acondicionada num medeiro e o cereal seguia para a tulha.

    1 aguçadoura - pedra de forma oblonga e estreita para afiar objetos cortantes;

    2 ferrã - centeio ou cevada ceifados em verde para alimentação dos animais;

    3 espalhadouras - utensílio agrícola de metal em forma de garfo e com um comprido cabo de madeira;

    4 cabaça - fruto da planta chamada cabaceira, em forma de uma grande pêra e que, depois de limpa no interior e seca servia de recipiente para líquidos;

    5 pipo - espécie de miniatura de uma pipa com capacidade variável entre 2 ou 3 litros;

    6 torna-jeira - consistia em trocar dias de trabalho com um vizinho;

    7 tardego - que chegava mais tarde;

    8 camarada - nome coletivo para um grupo de segadores;

    9 carolo - grande pedaço;

    10 faceira - banda que era cultivada num ano, ficando a outra de pousio;

    11 gabelas - molho de espigas ceifadas;

    12 vencelhas - atilho de palha valga (não batida) de centeio que, depois de molhada, servia para apertar os molhos;

    13 mornalheira - o conjunto dos molhos de uma leira colocados em pé e a formar círculo ou quadrado no centro da mesma.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · A invasão muçulmana de 711

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].