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    Arquivo: Edição de 30-10-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Humanitas

    As palavras e os seus referentes são como as pessoas: destas, umas quantas tornam-se inconvenientes, de difícil convívio; outras aceitáveis, talvez as cumprimentemos en passant, podemos até vir a estreitar laços com elas em condições propícias, todavia, ainda não fazem parte do nosso círculo relacional; por fim, o número mais significativo é daquelas que podem ser conhecidas, se não amigas e comungar connosco de maior ou menor grau de afectividade. Se alguém interferiu negativamente em nossa vida, é natural que não o/a convidemos para jantar nem lhe mandemos flores em ocasiões festivas; os (as) restantes são potenciais companheiros (as) de jornada, se não sofrermos da terrível doença que é o preconceito, por raça, credo ou até preferência partidária ou clubística, situação em que nos excluímos do seu convívio. Se, como se diz no Brasil, “há palavras que não dão samba” (não combinam com outras em letra de samba), existem algumas que são incompatíveis por uma de variadas razões: cacófato, pleonasmo, antítese, conciliação insanável dos referentes…

    A linguagem é um atributo humano, constituído por signos que remetem para objectos, ideias, conceitos, utilizados e imprescindíveis na convivência interpessoal. A mais importante de todas, porque tem acompanhado o Homo Sapiens desde o alvor desta espécie, ajudando-o no seu progressivo caminhar e adaptando-se às necessidades em cada momento da sua vivência, é a linguagem verbal.

    Sendo o homem o único ser vivo a dispor de uma linguagem articulada, ela torna-se por esse facto igualmente um organismo vivo. Tal como nós, a sua realização numa língua está sujeita ao ciclo natural: nascimento, vida e morte. Tomando como exemplo a Língua Portuguesa, ela nasceu do Latim, sofreu e continua a sofrer vicissitudes diversas que seria fastidioso aqui referir e, provavelmente, morrerá um dia por razões ainda impossíveis de determinar. Muitas das línguas que contribuíram para a formação da nossa, sobretudo o Latim e o Grego, são, há muito, “línguas mortas”. Elas próprias procederam de outras também já extintas que entroncavam no chamado grupo linguístico Indo-Europeu. Ao longo da sua existência, o nosso idioma sofreu inúmeras alterações: muitos vocábulos caíram em desuso, outros modificaram-se, foram sendo criados milhares de palavras adaptadas de línguas estrangeiras, resultantes dos processos de que a língua dispõe para esse efeito (derivação e composição) e ainda para designar fenómenos novos provenientes dos campos científico, político ou tecnológico.

    Vivemos numa época de acelerado desenvolvimento científico e tecnológico mas também de perda de valores éticos e morais que fizeram a grandeza da nossa civilização. Não por mera coincidência, regista-se um esmagamento dos mais fracos e indefesos pelo sistema capitalista, agora sem nenhum entrave sério aos seus desmandos. Num ambiente assim, estão criadas as condições ideais para o alastramento da corrupção e de toda a espécie de abusos. Aumenta a pobreza à custa das classes médias, sempre chamadas a colmatar os erros dos maus governantes. De acordo com os apetites genéticos do capitalismo, muitas empresas são mal geridas, descapitalizadas por manobras fraudulentas deslocalizadas, e os respectivos trabalhadores despedidos, quer pelo seu encerramento, quer como primeiro opção para repor a viabilidade das que se encontram em situação de risco. Aos maus gestores são atribuídos prémios chorudos somados a ordenados exorbitantes. A maioria destes cérebros da gestão desastrosa é oriunda da área política, por sua vez formada nas juventudes partidárias, quase todos pertencentes a “boas famílias” dum certo estrato sócio-económico ou apadrinhados por figuras de relevo. Passam do exercício de funções governativas para a administração de grandes empresas de que o Estado é o principal accionista ou em cujo capital detém parcela significativa, beneficiando da exposição mediática que a actividade política lhes proporcionou.

    Regressando ao exórdio, coloco à apreciação do leitor compatibilidade lógica de certas palavras. Veja, por exemplo, se humanismo aceita de bom grado partilhar o mesmo transporte que globalização, termo acarinhado pelas hostes capitalistas para velar aos olhos dos cidadãos as manigâncias com que tentam manipulá-los, mantendo-os dóceis e submissos. De caminho, analise também o possível relacionamento entre humanidades e tecnologias tendo em conta a conotação que envolve este último vocábulo.

    Por humanismo entende-se, habitualmente, a teoria segundo a qual o homem deve ser o centro das preocupações não apenas dos estudiosos mas de toda a vida e actividade humanas. O termo nunca foi utilizado pelos homens do Renascimento que desenvolveram toda a sua acção nesse sentido, contrariamente ao que defendiam os filósofos e teólogos durante a Idade Média segundo os quais Deus era esse referencial maior para todos os viventes. Embora não negando a importância divina na existência do homem, este é que deveria merecer as maiores atenções. Estes homens são conhecidos pelo nome de humanistas, embora o vocábulo humanismo tenha aparecido pela primeira vez escrito numa obra do escritor bávaro F.J. Niethamer publicada em 1808. No entanto, são considerados como percursores do humanismo ocidental os filósofos gregos Sócrates e Protágoras. O primeiro foi considerado pelo oráculo de Delfos “o mais sábio de todos os homens” por “ter compreendido, até às últimas consequências, a máxima ‘conhece-te a ti mesmo’ e encarnou um modo de existência em que verdade e vida, ciência e sabedoria, experiência racional e experiência mística não se dissociam, antes caminham a par, abrindo-se a todo o horizonte do real e do possível, do humano e do mais que humano”. Humanismo deriva dos termos humanus e humanitas definidos pelo escritor e político latino Cícero. Compreende-se, pois, que os homens do Renascimento tenham defendido o regresso ao estudo da Antiguidade Grega e Latina como grande fonte do conhecimento. O Humanismo desenvolveu-se ao longo dos séculos XV e XVI e foram suas grandes figuras Bocaccio, Petrarca, E,Valla, L. Vives, Erasmo e Thomas Morus e, entre nós, Damião de Góis.

    No entender de Cícero, humanitas, que podemos traduzir livremente por humanidade, designa três coisas: a característica que define o homem como homem, aquilo que vincula um homem a outro homem e aos homens em geral e aquilo que forma o homem como homem, as letras e as artes. Foi neste último sentido que persistiu durante muitos séculos no Ocidente como ideal de vida, de civilização e de cultura, ideal que o Cristianismo não suprimirá, antes adoptará, procurando depurá-lo das conotações pagãs. Pelo ideal greco-latino, o homem julgava tornar-se mais humano ou mais verdadeira e plenamente homem desenvolvendo as suas capacidades físicas, intelectuais e morais à imagem e semelhança dos grandes modelos de sabedoria e de ciência, de arte e de virtude que a Grécia e Roma tinham encarnado ou revelado e que o Cristianismo tinha prolongado, transpondo-os noutro registo. No século XVIII, com o desenvolvimento das ciências experimentais, foram aparecendo as preocupações de se tornar a pedagogia da formação mais utilitária e cingida à vida concreta. A tendência, nos séculos seguintes, foi a de manter e acentuar o dualismo entre Humanidades clássicas e o estudo das ciências e das técnicas mais próximas das ocupações utilitárias da vida. O ideal será harmonizar a formação humana com a científica que se tornou cada vez mais difícil com o desenvolvimento das ciências teóricas e aplicadas. A não se realizar, de algum modo, essa harmonia, a “especialidade” que sobrevaloriza aspectos parciais torna-se desumana na sua hipertrofia daquilo que, em rigor, não pode deixar de ser secundário, embora mais útil técnica e economicamente, como diz João Mendes na Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura.

    É, precisamente isto que está a acontecer, a subvalorização das Humanidades e a sobrevalorização das Ciências e das Técnicas ao serviço dos aspectos utilitários da vida, do que se aproveita o sistema capitalista para reduzir a maioria dos seres humanos a meros números estatísticos, retirando-lhes a dignidade inerente ao ser humano. Os trabalhadores são, de há uns tempos a esta parte, “recursos humanos” que, como quaisquer objectos, podem ser alienados, manipulados e despejados como excedentes em nome do lucro de uns tantos. É urgente que haja uma inversão neste perigoso trajecto para que o Humanismo volte à ordem do dia e todos os seres humanos recuperem a dignidade que lhes é intrínseca.

    Por: Nuno Afonso

     

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