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    Arquivo: Edição de 30-07-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    O preço do amor

    Vivemos sob o mesmo tecto com intervalo de várias décadas, despendemos algumas das nossas horas calcorreando os mesmos caminhos; refizemos energias com produtos das mesmas terras; participámos das mesmas tradições culturais; a ambos deve ter-nos surpreendido e emocionado o nascer e o pôr-do-sol num qualquer ponto da serra; corria-nos nas veias sangue de composição semelhante, definidora de parentesco chegado.

    Não nos conhecemos nem tal seria possível, uma vez que ele já deveria ter partido quando eu dei entrada neste mundo. Dele não achei traços no antigo casarão que já fora dos Rodrigues e ia na segunda geração dos Nunes: nem o assento que lhe era habitual no escano familiar, móvel, ao mesmo tempo, para descanso e convívio que tinha acoplada a mesa das refeições; nem o quarto onde dormia, o que era natural uma vez que o crescimento da prole e as exigências do trabalho agrícola determinavam uma espécie de nomadismo interno cuja excepção seria, claro, o aposento dos pais; nem uma história relacionada com a sua infância com um dito curioso, uma expressão linguística habitual, uma forma diferente de pronunciar letras ou palavras.

    Parafraseando o título de um filme de Pedro Almodôvar, “duas ou três coisas que sabemos” acerca desse tio é material que baste para fazermos o seu debuxo com certa fidedignidade. Era homem de boa compleição física, olhar vivo e enérgico e uma expressão atraente, garantias de fácil relacionamento interpessoal. É a leitura que faço ao observar a cópia de uma fotografia sua, coisa rara nesses tempos distantes – início do século XX – em que, por regra, os jovens cometiam a proeza de se apresentar face à objectiva do retratista envergando a farda militar ou “à civil” quando se encontrava longe da família, para expressar aos pais a sua saudade.

    Quem o conheceu assegura que era um rapaz muito popular, não obstante tratar-se do primogénito de um dos lavradores mais abastados da aldeia. Desde garoto divertia-se a lançar o pião, a jogar à porca, ao peru-galo, à palmada, à cabra--cega, ao pulo e ao fito, esgadanhava braços e pernas a trepar às cerejeiras e às poucas figueiras existentes na encosta aberta do rio mais por irrequietude do que por gulodice, fazia subalhões nos pés devido ao hábito de andar descalço por caminhos pedregosos, restolhos e matagais na companhia dos amigos à procura de ninhos ou a armar esparrelas à passarada; já no limiar da idade adulta, jogava os paus nas ociosas tardes de domingo, atirava o ferro e a pedra a medir forças com outros rapazes nos raros momentos que o trabalho lhe permitia, entrava nos frequentes bailaricos da aldeia, participava nas rusgas, esferrunchando o bandolim em parceria com o Albano da Requeixada na gaita-de-foles, o Costento (Constantino) nos ferrinhos, o Gregório no bombo e o Saltaricas na rabeca. Não importava por aí além a execução técnica das cantigas, o importante era bem dispor a rapaziada e arrancar suspiros às moças ocupadas nas tarefas caseiras e submetidas à rigorosa vigilância das mães.

    A verdade é que as oportunidades de convivência entre rapazes e raparigas eram sobejas nos trabalhos do campo, em encontros “por lá”, casuais ou nem tanto, de pouco valendo todo aquele cuidado na preservação da honra das meninas se eles e elas não levassem em conta os repetidos avisos dos mais velhos e o indispensável auto-domínio. Havia barreiras difíceis de transpor, é certo, sobretudo em se tratando de jovens de famílias renomadas, mas, ainda assim, de quando em vez, aconteciam prevaricações e escândalos.

    Diziam que era muito trabalhador, mormente quando ia fazer serviço para outras pessoas. O pai entregara-lhe uma junta de vacas para lavrar as terras dos mais necessitados e que não possuíam animais de tiro, mostrando-se à altura das circunstâncias e concitando a simpatia dos beneficiados.

    Desde muito cedo o António despertou para o amor, primeiro uma atracção espontânea, o gostar da companhia daquela moça e, aos poucos, um sentimento cada vez mais intenso foi tomando conta dele. Objecto dessa inclinação foi a Ana Pires, filha de um casal de modestas posses. Também ela se deixou enlear na teia em que o destino parecia, inocentemente, envolvê-los. Aos poucos foram-se apercebendo de que um amor assim não tinha futuro, quando chegasse o momento decisivo não seriam eles a resolver, em liberdade, o rumo que quisessem dar às suas vidas. O pai do António andaria, certamente, a cogitar no melhor partido para o seu filho mais velho, tal como fizera o seu avô e outros antes dele. Um dia haveria de lhe dizer, talvez à noite depois de terem comido o caldo:

    «António, vais casar com …».

    E o rapaz não cairia das nuvens nem do escano que era largo e suficientemente robusto para nele se firmar. Sentir-se-ia, zangado, sem dúvida, quem sabe se diria que gostava de outra mulher, talvez não, porque o pai sabia disso há muito tempo, na aldeia não havia segredos, e o que dissesse de nada valeria. O dever do pai era escolher o que fosse melhor para o seu filho e estava seguro de que o melhor era casá-lo com quem ele determinasse.

    Os dias foram passando, ele à espera da decisão paterna e ela de coração a apertar--se-lhe cada vez que o António se aproximava, os dois, como Pedro e Inês, “naquele engano d’alma ledo e cego que a Fortuna não deixa durar muito”. A certeza de que um dia ouviriam a sentença que tanto receavam fazia com que o seu amor aumentasse, aumentasse… A atracção do abismo seduzia-os, separarem-se era coisa que não podiam imaginar.

    O dia fatídico chegou, o António ouviu o pronunciamento, impossível dizer se foi à hora da ceia e se já tinha alguma informação acerca da pessoa escolhida.

    – Vais casar com a tua prima Benigna de Vila Boa. No dia de feira (3, 12 ou 21?) vais a Bragança e começas a tratar dos papéis. Os dela correm por Vinhais e o Zé Félix ficou de lhes dar andamento.

    Não seria preciso dizer que a primeira pessoa a ser informada, fora do círculo familiar, foi a Ana. Julgou que ia morrer, escondeu-se da família e chorou todas as lágrimas que tinha, sem que daí adviesse qualquer alívio.

    Nem de propósito, o matrimónio foi celebrado em Novembro de 1914, quando a 1ª Guerra Mundial começava a devastar a Europa, mau presságio para os noivos atingidos já por desentendimentos sérios. O novo casal foi viver para Nunes onde o pai do António possuía um casal. A Ana continuou a viver com os pais agora mais longe, mas não apartada, do seu grande amor.

    A Benigna tinha por certo, mesmo antes de casar, que o António gostava de outra mulher e sabia quem era. Cada vez que o marido falava em deslocar-se a Alimonde, ela transformava-se numa fera. O António, porém, não podia evitar essas deslocações nem que o quisesse, e não era o caso. Os pais e os irmãos continuavam lá, as relações familiares costumavam manter-se, visitavam-se na mata-porca, nas festas anuais em casamentos e enterros. Além disso, havia assuntos relacionados com as propriedades que administrava e forçoso se tornava ir falar com o pai. De caminho, encontrava-se com a Ana. E o certo é que, no mesmo ano em que nascia a primeira filha do António e da Benigna, nascia outra menina fruto do amor entre o António e a Ana. Se as relações do casal já não eram aceitáveis, piores se tornaram com este duplo nascimento. Acresce que a Benigna era mulher “de pêlo na venta”, incapaz de engolir tamanha ofensa. Porém e não obstante as quezílias por de mais conhecidas, o casamento ia-se mantendo, os filhos sucederam-se com regularidade, eram já cinco quando o António decidiu alterar a rotina e viajar para França, o que, num país e numa região tradicionalmente emigrante, não constituía motivo de surpresa. Poderia muito bem justificar-se com a necessidade de melhorar as condições económicas da família, já eram sete bocas para alimentar, e o país de destino precisava de braços para se recompor no post-guerra, haveria certamente boas oportunidades de ganhar dinheiro.

    Se, na ocasião, esta atitude pareceu normal, o silêncio que se instalou veio, aparentemente, confirmar o que todos suspeitavam: o António encontrara uma justificação para escapar ao suplício em que vivia. Escreveu para informar que tinha chegado bem e já tinha trabalho e alojamento numa cidade pouco conhecida do Departamento de Isère. Aos poucos, a correspondência foi rareando até que, de todo, cessou. Alguns anos depois, o irmão Francisco, que regressara do serviço militar, decidiu ir procurá-lo. Já não morava na mesma cidade mas conseguiu dar com ele a mais de uma centena de quilómetros dali. Encontrou-o numa espécie de celeiro meio destruído, em piores condições do que as que eram dispensadas a ciganos e mendigos que, nesse tempo, vagueavam pelas aldeias do Nordeste Transmontano. Não havia iluminação interior nem água canalizada. O António jazia sobre um monte de palha, alcoólico e doente. Francisco quis dar-lhe de comer mas nada encontrou além de um bocado de chocolate para uso culinário, meia baguette e uma garrafa de vinho de má qualidade. Perguntou-lhe onde podia ir buscar água. O irmão respondeu que era longe dali, que fizesse o chocolate com vinho. Francisco pegou num jarro e foi procurar água, comprou o estritamente necessário para preparar uma refeição, que o dinheiro era pouco e tornava-se necessário esticá--lo para ficar com o irmão ainda alguns dias. Escreveu à cunhada a pedir-lhe que o aceitasse de volta, dado o estado de saúde em que se encontrava. Entretanto, o António melhorou e deixou de beber, prometendo que iria mudar de vida. Infelizmente, o Francisco tinha que regressar não sem que o irmão lhe garantisse que iria dando notícias, ambos na esperança de que a Benigna respondesse afirmativamente, o que não aconteceu. Do António nada mais souberam, apesar dos esforços desenvolvidos pelos pais e irmãos junto das autoridades locais.

    Por: Nuno Afonso

     

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