Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 29-02-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 10-07-2010

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Realidade e imaginação

    Com palavras se criam mundos outros, e com elas se recreiam os humanos, imitando pessoas e situações. O emissor conjuga a realidade com a sua fantasia, pondo em ação personagens que, de um certo modo, se ajustam a alguém que conhece ou conheceu possuidor de qualidades e fraquezas, semelhantes em atitudes e comportamentos, descreve os locais em que elas actuam, procura que as acções narradas tenham um cunho de veracidade e realismo, utiliza conhecimentos e técnicas adequadas à obra que concebeu; o receptor, por seu lado, tenta dar um rosto às personagens que lhe são apresentadas, reage aos comportamentos como se correspondessem a gente sua conhecida, apreende as qualidades artísticas e o “saber fazer” do autor do discurso, enquadra as acções em sítios que lhe acordam lembranças pela similitude com as próprias experiências de vida.

    Do alto do Santo António, espraio o meu olhar em semicírculo e deixo-me inebriar pela esplêndida paisagem que se me oferece. Da direita para a esquerda, a vila apresenta-se donairosa, bela na sua geometria sabiamente disposta, de construções obedientes a escorreitas normas urbanísticas, prédios de apartamentos e moradias que não puderam escorraçar prados e terras de semeadura, lembranças de um passado agrícola não muito longínquo. Recostada ao sol de Maio, Vinhais acorda a minha memória como se fora ontem que nos apartámos, parece que o tempo não passou por ela. Veste-se à moda, vira-se ao futuro, mas guarda a frescura e a graça do meu tempo de menino. À nossa frente, o verde dos montes vem descendo gradualmente para os regatos que se dirigem, pressurosos, em direcção ao Tuela mais abaixo. Na margem esquerda do rio, à esquerda, grandes soutos, espessos carvalhais e numerosos arbustos abraçam montes de elevado porte, tingem-nos em vários tons de verde. Tão absorvido fiquei na contemplação daquela paisagem de encanto que não pude constatar se os medronhos, que outrora fizeram as nossas delícias, quando para ali íamos passear nas tardes de domingo, ainda povoavam a encosta que, da capela de Santo António, descia para o vale.

    Por ali teríamos ficado horas sem conta não fosse o relógio que todos possuímos e nos adverte de que são horas de satisfazer o estômago. Descemos à vila onde o almoço já nos aguardava em ambiente de amizade. Esperava-nos o primo António Afonso com a boa disposição costumeira e a negativa experiência que, maugrado seu, adquiriu em recuados tempos no Brasil. Até as más vivências deixam recordações positivas, reconhece, agora que elas lhe permitem ajudar o filho Nuno no restaurante que explora na, justamente chamada, Sintra Transmontana. Abrimos o repositório de imagens de que ambos participámos num misto de nostalgia pelos nossos verdes anos tão longínquos, passados em trabalhos desgastantes e de mágoa pelas humilhações então sofridas:

    - Acreditas, se te disser que ainda tenho pesadelos como se estivesse no Itú a servir aqueles tipos, que me insultam e ameaçam como faziam antigamente?

    - Os meus pesadelos têm outra origem e, felizmente, vão desaparecendo. Do Brasil, agora, só tenho boas recordações. Olha, veste a pele de turista e vai lá passar umas férias. Como sabes, há lugares espectaculares naquele país “abençoado por Deus”. Verás que os pesadelos desaparecem de vez e darão lugar a memórias duradouras.

    O motivo da nossa deslocação a Vinhais foi a apresentação do meu livro “O Meu Povo em Gente” integrada nas comemorações do feriado municipal. Pudemos ainda assistir a outros eventos culturais: exposição sobre uma personalidade da terra que se distinguiu na 1ª Guerra Mundial e foi conselheiro de Salazar e a visita ao Centro Histórico. Interessante verificar que uma autarquia de domínio socialista rende homenagem a um militar da terra que se distinguiu na 1ª Guerra Mundial e foi também conselheiro de Salazar, procurando, por entre a ganga dos preconceitos, o brilho das qualidades humanas dum homem que soube honrar o seu berço. A apresentação da sua correspondência com o Chefe do Governo revela um homem íntegro, escrupuloso no cumprimento das suas obrigações, de tão elevada craveira intelectual e moral que o próprio superior chega a pedir-lhe desculpas por supostas faltas de atenção.

    Demorar-nos-íamos ainda algum tempo em Vinhais se pudéssemos ordenar ao tempo que sustivesse a sua marcha. O dia apresentava-se convidativo para um passeio pelas ruas principais da vila, mas a tarde já entrara na idade madura, pouco mais de três horas e cresceriam as primeiras sombras.

    Antes de entrarmos no automóvel, alongámos a vista pela fachada da Igreja Matriz com a célebre figueira no campanário e pelo edifício que foi convento de Franciscanos, mais tarde Seminário Menor, depois Colégio, até entrar em decadência com ruína anunciada. Foi ali que vivi os primeiros três anos, longe do aconchego familiar, período difícil sob um regime quase espartano, sujeito a rígida disciplina moral e cívica. Além do espaço construído, havia uma extensa propriedade agrícola, com vinha, árvores de fruto variadas, plantação de renovo e de sequeiro. De todas as espécies frutícolas, as melhores peças destinavam-se ao refeitório dos “superiores”, nome pelo qual designávamos os padres encarregados da nossa formação como estudantes e futuros sacerdotes. Os alunos tinham de contentar-se com as maçãs mais pequenas a que o povo chama, depreciativamente, “malapas”, quando havia sobremesa. Por mais que nos crescesse água na boca ao pensarmos nas maçãs coradas e de calibre superior, nas peras, nas ameixas, nos figos ou nos morangos, ninguém se atrevia a penetrar na cerca, sabendo que, no limite, arriscava a expulsão, signo parecido com excomunhão muito para lá da rima. A sede de heroísmo não compensava a vergonha de ver-se confrontado com os pais, chamados ao Seminário para levarem consigo o filho ladrão. Contentávamo-nos em inventar brincadeiras como a que dizia respeito aos morangos. Havia uma solenidade anual em que padres e seminaristas percorriam a cerca entoando uma ladainha a pedir a protecção de numerosos habitantes da Corte Celeste. Quem presidia à cerimónia, normalmente o Reitor, entoava o nome de um santo e os restantes respondiam em coro: “ora pro nobis!”. Muitos imitavam a melopeia, invocando repetidas vezes os “santos morangos” e outros introduziam ligeira mudança na resposta ao fazerem variar o verbo: “orate pro nobis!”

    Apesar dos constrangimentos e dos possíveis castigos a que estávamos sujeitos, outros factores contribuíram para que guardássemos boas memórias desse período das nossas vidas. Muitas vezes dou por mim a localizar aqui histórias que leio e ouço. A experiência pedagógica de Summer Hill que, há décadas, foi best-seller mundial, afigurou-se-me ocorrida neste lugar, cada um de nós dono de si próprio, a optar, livremente, entre ir às aulas e aos actos religiosos ou vaguear pela cerca na companhia dos amigos, trepando às árvores, correndo e folgando, sem “má consciência” nem receio de exemplar punição. Também localizei aqui a edificante história do frade que, atraído pelo canto de um passarinho, seguiu atrás dele, esquecido das orações e das tarefas a que estava sujeito pela comunidade. Quando quis volver sobre os próprios passos, experimentou enormes dificuldades, não foi capaz de atinar com o caminho de regresso e, ao chegar, por fim, depois de muitas peripécias, não reconheceu o convento donde partira. Declinando o seu nome, ninguém soube de quem se tratava até que, pela maneira como se exprimia, pelo corte do hábito que vestia e muitos outros sinais, o Abade descobriu que se tratava de um irmão que pertencera àquela ordem há três séculos. Imaginei a figura do Padre Fernandes, vá-se lá saber porquê, na personagem do monge que regressava à Casa-Mãe trezentos anos depois de ter saído, crente de que dera um passeio um tantinho mais prolongado.

    Mas, para que o périplo ficasse completo, propus que visitássemos as localidades em que decorreu a minha infância: a terra onde nascera o meu bisavô paterno, as aldeias donde procediam os meus avós, para terminar, já o sol começava a esconder-se por detrás do cabeço do Lombo, no povoado onde cresci. Tive a enorme satisfação de sermos recebidos por alguns familiares e muitas pessoas amigas com a fidalguia habitual, extensiva ao senhor Professor Carlos Faria e digníssima esposa, Dª Maria do Sameiro, que nos acompanharam e puderam assim testemunhar a razão dos sentimentos que me ligam àquela gente.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · Gosto da Argentina. E daí?

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].