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    Arquivo: Edição de 28-02-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

    A língua é, sem nenhuma dúvida, o elemento estruturante por excelência duma sociedade, bem como o seu mais rico património. Por meio dela nos reconhecemos como pares, exprimimos os nossos estados de alma, comungamos valores e tradições, regemo-nos pelas mesmas normas, partilhamos costumes idênticos, revemo-nos na mesma mitologia. É verdade, porém, que, na maior parte dos casos, descuramos esse património quando não o enxovalhamos, o que acontece com muita frequência. Talvez assim procedamos porque nos foi transmitido natural e gratuitamente por sucessivas gerações que nos antecederam.

    A língua é um organismo vivo uma vez que é utilizada por seres dotados de inteligência e, porque tudo quanto é natural evolui, mormente quando iluminado pela capacidade criadora dos homens, também ela sofre alterações, adaptações, acrescentos e supressões determinadas pela mudança que, continuamente, se opera no mundo em que vivemos. O povo, no seu mercadejar linguístico, vai transformando a língua de acordo com mudanças que, constantemente, se verificam no decurso da vida. Por isso se diz que “é o povo que faz a língua”. No entanto, existem homens que, pelo estudo sistemático dos fenómenos verificados na utilização do idioma, elaboraram um conjunto de regras que deviam pautar o uso adequado dos recursos linguísticos nos vários actos de fala. Essa descrição do idioma, regularmente actualizado, é-nos proposto através de gramáticas, prontuários, dicionários e outros. Os homens, que dedicam a sua capacidade intelectual a esse trabalho, consoante o prisma da respectiva actividade, são linguistas, filólogos, gramáticos, pedagogos. Nunca será de mais encarecer a importância do seu labor em prol da defesa desse tesouro que a todos pertence e pelo qual todos deveríamos zelar. A Academia Portuguesa das Ciências e a Academia Brasileira de Letras assim como outros organismos oficiais supervisionam a utilização da Língua.

    A par do desinteresse, que se revela cada vez maior, pela aprendizagem da Língua Portuguesa nas escolas, o índice significativo de abandono escolar verificado entre nós e a dificuldade de adaptação dos estudantes, provindos de meios sócio-económicos débeis, ao discurso que lhes é apresentado na escola, deparamo-nos com graves atropelos ao seu bom uso, no dia a dia, em noticiários e legendas das televisões e, com insuspeita pujança nas mensagens trocadas por telemóvel (celular), via SMS e torna--se quase irreconhecível no chorrilho de erros vomitados em comentários às notícias transmitidas on-line, em blogs, sites e mensagens diversas. Com efeito, na minha qualidade de professor de Língua Portuguesa, conheço muito bem as dificuldades que a escola enfrenta para contrariar a viciação do idioma porque lutei, denodadamente, contra elas. Muitas vezes declarei aos meus colegas que estávamos a ensinar uma “língua segunda” pelo que o ensino requeria abordagem específica. Todavia, muitos dos pecados mortais cometidos por gente que se preza de bem falar e de bem escrever vêm de há muitos anos e vão-se repetindo impunemente. Não direi, aqui e agora, desses tratos de polé que a língua vai sofrendo momento a momento. Ficarão para um trabalho que, espero, contribua para uma adequada reflexão acerca deste momentoso assunto.

    Quanto ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, celebrado em 1990, há vinte anos pois, e aprovado na Assembleia da República e em Conselho de Ministros em 2008 para entrar em vigor a 1 de Janeiro de 2009, talvez por falta de esclarecimento, tem sido incompreendido, vilipendiado, rejeitado e, mais grave ainda, utilizado como “arma de arremesso” sobretudo contra os brasileiros que, supostamente, estariam em Portugal “a roubar” empregos aos portugueses.

    CINCO PONTOS PRÉVIOS

    Importa colocar quatro ou cinco pontos prévios que me parecem de suma importância: 1º- O Acordo não é Luso-Brasileiro, mas de todos os países lusófonos, porque todos o aceitaram. Quanto a ser oficialmente reconhecido, estabeleceu-se que o seria logo que três dos países signatários o tivessem ratificado. Até agora, foi ratificado por Portugal, Brasil, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe. O facto de ter sido o Brasil o primeiro país a cumprir o estipulado nada tem a ver com humilhação ou ultrapassagem da parte portuguesa pela brasileira. Lá como cá, houve acérrimas resistências, alinhando no contra figuras importantes da sociedade brasileira e outras nem tanto: romancistas, poetas, dramaturgos, críticos literários, leitores com índice de literacia diverso. Eu encontrava-me no Brasil em 2007 quando se preparava a sua entrada em vigor. Ao embarcar para Portugal, em princípios de Setembro desse ano, adquiri o jornal “A Folha de S. Paulo”, que dedicou um caderno à questão do Acordo, com reportagens, entrevistas, opiniões. Trouxe-o comigo e, no início do ano lectivo de 2007/2008, afixei-o na sala dos professores, acompanhando o gesto com o meu parecer favorável ao Acordo. 2º- Só alguns aspectos da ortografia da Língua Portuguesa, – e apenas da ortografia – foram objecto de alterações, justamente porque houve negociação, e tanto Portugal como Brasil cederam em pontos onde prevaleceu a lógica em detrimento da habituação ou da génese das palavras com o menor risco possível na compreensão dos textos orais ou escritos. Portugal cedeu, por exemplo, na supressão das consoantes mudas, como em ação, redação, deteção, ótimo, batismo, batismal e muitas outras, mas manteve aquelas consoantes que se pronunciavam; o Brasil aceitou abolir o uso do trema, nos grupos gu e qu em que o u era pronunciado, tais como cinquenta, arguição, tranquilo. Em percentagem, o Brasil alterou 0,5%; Portugal e os restantes países lusófonos fizeram modificações em 1,6%. Convém, no entanto, dizer que o Brasil sempre teve uma visão mais progressista e utilitária do idioma, ao invés de Portugal, muito mais conservador e fiel à etimologia. Os restantes países que adoptaram o Português como língua oficial entenderam manter-se ao lado de Portugal por ainda não possuírem uma clara diferenciação relativamente ao Português europeu. 3º- Esta é uma questão linguística, devem excluir-se, liminarmente, conotações de outra ordem sejam políticas, económicas, sociais ou culturais. Há muitos imigrantes brasileiros em Portugal, é verdade mas, desde o século XIX, houve emigração de Portugueses para o Brasil com grande relevo ao longo de quase todo o século XX. Os portugueses foram sempre bem aceites pelos brasileiros, – anedotas à parte, que nós também as contamos dos alentejanos, tão portugueses como os outros, – muitos lá construíram fortunas, constituíram família, por lá permaneceram e encontram-se integrados na sociedade que os considera brasileiros de pleno direito. Porque não haveríamos de dar reciprocidade aos que assim procederam connosco? Existem leis que regem a entrada, legalização e integração de estrangeiros. Em relação aos “Palop”, têm sido celebrados acordos que lhes concedem alguns privilégios. Muitos estão integrados na nossa sociedade e contribuem para o progresso colectivo. Em geral, os brasileiros ocupam lugares não qualificados, concorrem em pé de igualdade com os nacionais mas a preferência é destes. 4º- A Língua Portuguesa, como todas as outras, não tem dono. Fomos nós que a transmitimos aos povos por nós descobertos e colonizados. Foi um bem cultural que lhes legámos e que eles muito têm prezado. O Português é tão nosso como deles. Já imaginou o leitor se ingleses, espanhóis, franceses, holandeses, entre outros, exigissem pagamento de “royalties” pela utilização dos respectivos idiomas? Se tal fosse regra, a quem pagariam esse privilégio os idiomas de origem maioritária do Latim, da família anglo-saxónica, da família eslava e árabe, cujas matrizes já se extinguiram? E quase todas essas famílias que provêm do indo-europeu de quem seriam devedoras? 5º- O presente Acordo não constituiu a primeira tentativa de unificação da ortografia do nosso idioma. Houve uma em 1911, um ano depois da implantação da República em Portugal e outra em 1931, ambas fracassadas. Este é, portanto, o terceiro compromisso e esperamos que venha a ser, efectivamente, aplicado por todos os países que adoptaram oficialmente a língua de Camões.

    São de vária ordem as vantagens que resultarão de um acordo alargado entre as partes: de ordem política porque a documentação em Português surgirá, nos areópagos internacionais, numa única versão, sem alusão à sua procedência, como até agora tem acontecido, o que não é negligenciável, surgirá como representante de uma comunidade alargada e cada vez mais representativa. Convém não esquecer que, se Portugal está incluído na União Europeia e faz parte do grupo de dezasseis países que adoptaram o euro como moeda única, o Brasil é uma economia emergente que, tudo indica, brevemente se tornará uma grande potência económica e já hoje tem uma voz poderosa no concerto das nações, não esquecendo a crescente importância internacional de Angola; no plano económico, porque facilita às partes envolvidas em qualquer transacção uma leitura unívoca da nossa língua e beneficiará do entendimento político facilitado e fortalecido a que aludi; no plano social, educacional, cultural e outros é indubitável o benefício que desse entendimento advirão pelas razões anteriormente apontadas.

    A hecatombe que os profetas da desgraça anunciaram como resultado deste acordo não faz qualquer sentido quando comparada com as vantagens que dele resultarão.

    Por: Nuno Afonso

     

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