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    Arquivo: Edição de 30-10-2009

    SECÇÃO: Arte Nona


    Os Passageiros do Vento

    Corria o ano de 1980 quando François Bourgeon maravilhou os amantes de Banda Desenhada com o primeiro livro de uma saga, “Os Passageiros do Vento”, que intitulou “La Fille sous la dunette” (na tradução portuguesa “A Rapariga no Tombadilho”), série de aventuras de carácter histórico, na qual era visível a exigência do trabalho de pesquisa do autor, responsável pelo argumento, desenho e coloração.

    Se o enquadramento histórico já por si é de assinalar, que dizer, por um lado, da sedução do enredo, e da excelência dos diálogos, e por outro, da riqueza do desenho e do seu acabamento impecável?

    Abordamos aqui hoje a publicação de toda a saga pela parceria Asa/Público, em particular, o mais recente livro, “A Menina de Bois-Caïman”, com que Bourgeon se prepara para dar o toque final nesta obra-prima da BD mundial.

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    Em mais uma edição da Bedeteca Asa//Público, esta parceria editou recentemente (o último livro saiu este mês), toda a saga de “Os Passageiros do Vento” de François Bourgeon (“A Rapariga no Tombadilho”, “O Pontão”, “A Feitoria de Judá”, “A Hora da Serpente”, “Ébano” e... “A Menina de Bois-Caïman”.

    Se, em relação aos cinco primeiros títulos, a sua reedição é de saudar (tinham sido objecto de publicação em Português pela Meribérica), o último volume, “A Menina de Bois--Caïman” é a primeira edição portuguesa, que se reveste de um interesse particular.

    De facto, toda a saga, excepto este último volume, foi publicada entre 1980 e 1984 na Casterman (e as traduções portuguesas entre 83 e 88), mas “A Menina de Bois-Caïman” (no original “La Petite Fille Bois-Caïman”) data deste ano de 2009 e é, por isso mesmo, um excitante regresso de François Bourgeon a esta saga de culto. É, aliás, a preparação do seu final, pois o próprio Bourgeon terá anunciado que a série se concluiria, em definitivo, com mais um tomo.

    Ao contrário dos cinco primeiros, cuja acção decorre nos finais do século XVIII, uma grande parte no mar, mas depois também em África, tendo como pano de fundo o tráfico de escravos para a América, “A Menina de Boi-Caïman” decorre naquilo que são hoje os Estados Unidos, logo depois da Guerra Civil que opôs os Estados do Norte aos do Sul.

    Aparentemente, além se quisermos, de Quentin Coustans, que goza também de um lugar de primeira linha nesta estória, parece introduzir uma nova heroína, miss Zabo (que se pretende dirigir à casa da sua família, depois de ver destruída pela guerra a casa da fazenda onde habitava (tinha escoilhido o lado mau da guerra – o dos perdedores).

    O seu colega de viagem, que a acompanha e protege no seu percurso para norte, entre escaramuças com soldados desgarrados que procedem a ajustes de contas e a pequenas pilhagens, não partilha, contudo das ideias de Zabo, parecendo antes reflectir ideias socialistas e conhecer pensadores e artistas como Marx ou Baudelaire, só para citar alguns dos mais notórios.

    Aliás, Zabo, à medida que vai conhecendo o pensamento de Quentin, vai-se defrontando com este dilema de, simpatizando cada vez mais com o seu guia, pelo contrário, detestar o seu pensamento.

    Mas Zabo só aparentemente é a heroína de “A Menona de Bois-Caïman”. Quando Zabo chega à sua casa de família, aí encontra a sua nonagenária bisavó, que lhe pede «Trata-me por Isa, duas Isabeau Murait seria complicado». De facto Isa e Zabo têm ambas exactamente o mesmo nome, Isabeau Murait, mas que resultam da abreviatura ou da corruptela no tratamento dado pelos outros (no caso de Zabo pelos criados negros, ao tratá-la por Miss Isabeau).

    Depois Isa conta ou Zabo lê a história aventurosa que Isa escreveu, sobre o seu próprio passado, e aí entramos, de novo, no âmago da série “Os Passageiros do Vento” voltando aos acontecimentos do século XVIII, quando Isa se estabelece na América.

    De facto, a hoistória de Isa, a verdadeira heroína de “Os Passageiros do Vento” começa muito antes, quando é usurpada do seu nome e posição pela amiga que se lhe parece quase como se fora sua irmã.

    Isa, que era nobre e foi tornada pobre por essa traição, irá fazer um percurso, que começa na revolta contra tudo e todos, no convento em que a internam de pequena, desde o desejo intenso de vingança, até desembocar na perspectiva mais ampla de uma mulher livre, que não se revê na brutalidade dos poderosos, se opõe à escravatura e à desigualdade e defende o amor livre, mas também a entrega total ao seu amado.

    Este surge nessa viagem, na figura de um marinheiro bretão que a descobre surpreso no navio, onde não era suposto terem embarcado mulheres.

    E depois, na estória, vão-se sucedendo algumas personagens inolvidáveis, como a sua volúvel amiga Mary, ou o seu criado, ou antes aliado Aouan, negro assimilado pelos brancos, cujo lugar parece pertencer a qualquer um dos lados, e muitas outras personagens e lugares fascinantes, como o velho barco ancorado nos baixios da praia para sempre e que serve de prisão, como a feitoria de Judá e a sua relação de interdependência com o rei negro que lhe vai fornecendo os escravos.

    De todos esses lugares, Bourgeon traça a rigorosa planta, por vezes mesmo em sentido literal, mas é sobretudo a geografia das almas que ele consegue traçar de uma forma absolutamente soberba.

    Uma obra-prima inquestionável!

    Por: LC

     

     

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