Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 15-04-2009

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    O último alveitar

    De sua competência, integridade e boa disposição davam sobeja fé os lavradores das múltiplas aldeias das redondezas a quem o senhor Armando prestava serviços: diagnosticava os males dos animais de trabalho, prescrevia a medicação adequada a cada caso, recorrendo à farmácia e também a mezinhas tradicionais, assistia o parto das fêmeas sempre que os nascituros reclamavam a intervenção de mãos adestradas para os fazer vir ao mundo, “calçava” as bestas que precisavam de ferraduras novas ou de substituir um ou mais cravos e fornecia dicas úteis a quem lhas pedia. Não raras vezes, os veterinários da cidade pediam-lhe conselhos, sabedores da sua longa experiência no ofício e do relacionamento de mútua confiança que ele e os camponeses mantinham.

    Nascido e criado em Bragança, chegou a frequentar o liceu, mas desistiu dos estudos para ajudar o pai na oficina de ferrador que possuía na cidade. Com efeito, embora o trabalho fosse penoso, achava-o preferível à disciplina rigorosa imposta aos estudantes e mais consentâneo com a sua maneira de ser. Desde miúdo repartia o tempo livre entre a oficina, a fazer recados ao pai e a apreciar as tarefas dos mais velhos, e a brincadeira com os colegas em que se destacava a pregar partidas, sendo as principais vítimas as mulheres que vinham das aldeias, puxando pela arreata as suas jumentas carregadas de lenha e de alimentos para venderem no burgo.

    Onde quer que encontrasse um silvedo, e não era descoberta difícil pela abundância do arbusto, o Armando puxava do canivete, ferramenta para ele mais útil do que outra qualquer, cortava uma pequena haste bem provida de picos e, junto com os amigos, escondia-se num talude à beira do caminho que elas percorriam. Depois, sorrateiramente, acercava-se duma das burras, prendia-lhe a haste de silva debaixo do rabo e, a fazer de conta que vinha ali por acaso, esperava o resultado. Quando a burra levantava a cauda para sacudir a moscaria que a atormentava, os picos enterravam-se-lhe na carne e era vê-la aos pinotes, espalhando a carga para todos os lados e contagiando as demais que se espantavam e fugiam ao controlo das donas. No meio da confusão, as mulheres entravam em pânico, deitavam as mãos à cabeça e pediam auxílio a Deus e aos santinhos da sua devoção, enquanto os garotos largavam a correr e a rir como perdidos.

    Outras vezes abriam uma quantidade de nozes, de maneira a não lascarem a parte exterior rígida e, depois de lhes comerem o miolo, deitavam a mão a gatos vadios e, com jeito, para não serem arranhados, enfiavam-lhas nas patas. Soltavam-nos, em seguida, de preferência por cima dos telhados. Amedrontados com o barulho que produziam, os bichanos chispavam e, quanto mais barulho ouviam, mais assustados ficavam e mais corriam. Os adultos protestavam contra os autores da brincadeira, mas pregavam no deserto, porque eles já se tinham posto a milhas.

    Supor-se-ia, com base em critérios actuais, que o Armando não passava de um menino de rua, sem regime familiar. Nada mais errado. O pai castigava-o sempre que alguém vinha fazer queixa dele. O miúdo prometia não reincidir, mas era travesso por natureza, nada a fazer.

    A traquinice era só uma face do seu espírito criativo, sociável e aplicado. Uma vez liberto da rigidez das aulas e dos livros, apaixonou-se pelo trabalho na oficina. De início, além de cumprir os recados de que o pai o encarregava no exterior, executava pequenas tarefas como ir buscar material para os mais velhos produzirem ferraduras e cravos, levar as ferramentas para onde eram precisas, puxar a corda do fole que mantinha acesa a fornalha, segurar ou prender os animais que os donos traziam para serem ferrados. Jamais perdia de vista o trabalho que os outros realizavam e tomava conta nas técnicas por eles empregues, reparando em pormenores que poderiam ser corrigidos ou aperfeiçoados.

    À medida que ia crescendo, o pai atribuía-lhe outras responsabilidades que mereciam elogios dos profissionais. Gostava de conversar com os lavradores sobre as doenças dos animais e as aflições que passavam para as vencerem. Dedicou-se à leitura de livros sobre o assunto, que o senhor Câmpios, também ferrador e amigo do pai, lhe emprestava. Os conhecimentos adquiridos permitiam-lhe sugerir determinado tratamento quando alguém se lamentava de moléstias de que um bicho padecia. Pouco a pouco, tornou-se conhecedor dos principais males que atacavam a cria e das formas de, mais eficazmente, as combater. Passou a ser chamado às aldeias para examinar bovinos, equinos ou asininos, que tratava com êxito. Ainda não fazia disso profissão, mas não passaram muitos anos até se estabelecer como alveitar. Fez prova de competência na Faculdade de Medicina Veterinária em Lisboa e obteve o respectivo alvará.

    Quando isso aconteceu, já tinha constituído família e esta é outra história que merece vencer a sombra. Não sendo galã nem sedutor, conquistou uma das mais bonitas e requestadas moças da cidade o que, de início, causou admiração e logo despeito, azedume e maledicência. Bem, talvez não fosse por esta ordem, é muito possível que todos estes sentimentos andassem misturados no espírito de rapazes preteridos e de jovens mulheres ressentidas. É sabido que ninguém gosta de perder, ainda que, bem lá no fundo da alma, reconheça mérito a quem venceu. As mexeriqueiras do costume propagaram que o Armando não conseguiria satisfazer os “luxos” de Maria Alice o que, numa cidade pequena como Bragança no início dos anos 40 do século findo, chegaria rápida e inelutavelmente aos ouvidos dos protagonistas. O Armando, unanimemente reconhecido como trabalhador e capaz de fazer valer os seus dotes profissionais, não gostou dos comentários, mas prometeu a si mesmo que mostraria a todos quantos o conheciam a injustiça de que era alvo. A vida encarregar-se-ia de lhe dar razão. A Maria Alice da juventude, mimada pela família, excelente modista, sempre vestida com gosto, não sofreu com a transição: o marido proporcionou-lhe sempre todo o conforto, adorava vê-la feliz “boca que queres, coração que desejas”, juntos viajaram pelo país e amaram-se como acontece nas histórias de fadas.

    Por: Nuno Afonso

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].