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    Arquivo: Edição de 15-01-2009

    SECÇÃO: Tecnologias


    A identificação da ideologia através da análise do discurso (3)

    Para realizar o objectivo deste trabalho – o exame do funcionamento do político no debate sobre o software livre tendo em vista uma análise dos sentidos – proponho a realização de alguns passos essenciais.

    A GPL

    foto
    A “Introdução” é o trecho do texto que soa menos parecido com um contrato jurídico. Ela lembra mais uma pequena dissertação, com uma justificação para os direitos e deveres estabelecidos pela licença. Desde o início ela coloca-se como uma alternativa, como algo que não pertence ao mundo jurídico dos contratos tradicionais para o uso de programas de computador. Diz o primeiro parágrafo:

    «As licenças da maioria dos softwares são elaboradas para suprimir a sua liberdade de compartilhá-los e modificá-los. A Licença Pública Geral do GNU, ao contrário, visa garantir a sua liberdade de compartilhar e modificar softwares livres para assegurar que o software seja livre para todos os seus utilizadores. (...) Você também poderá aplicá-la aos seus programas».

    A licença coloca-se a si mesma como um instrumento para a garantia de direitos, direitos estes que vão além do contrato a ser estabelecido, que extrapolam o escopo de um acordo jurídico. Ela tem um fim que não se esgota na relação entre o licenciador e o licenciado naquele momento, deve ser usada como instrumento para a garantia da liberdade de modificação e alteração do software dos futuros licenciados. Não só aquele licenciado naquele momento, mas a licença foi criada para ser usada exemplarmente por outros desenvolvedores em suas criações. Nesse sentido, ela coloca-se como meio para que desiguais (aqueles que não são proprietários do software) possam igualar-se aos “senhores” dos programas – para usar a metáfora estabelecida por Stallman no texto analisado no item 2 deste trabalho, ou seja, aqueles capazes legalmente de evitar a transformação dos softwares de que são proprietários – e também participem da comunidade capaz de distribuir, melhorar e adaptar os programas.

    No terceiro parágrafo, acontece uma inversão bastante interessante. Em geral, um contrato de licença é estabelecido tendo-se em vista o direito do proprietário do software, que concede alguns benefícios ao licenciado em troca de uma compensação financeira – e o licenciado também adquire algumas garantias. No caso da GPL, nesse trecho de introdução da licença, o foco são os direitos do licenciado e que, como já dito, vão além do produto software em questão.

    «Para proteger os seus direitos, necessitamos de fazer restrições que proíbem que alguém lhe negue esses direitos ou que lhe solicite que renuncie a eles. Essas restrições traduzem-se em determinadas responsabilidades que deverá assumir, se for distribuir cópias do software ou modificá-lo.

    (...)

    Protegemos os seus direitos através de dois passos: (1) estabelecendo direitos autorais sobre o software e (2) concedendo-lhe esta licença, que dá permissão legal para copiar, distribuir e/ou modificar o software».

    A licença coloca-se mediando não apenas a relação entre licenciador e licenciado, mas a relação do licenciado com o mundo externo. Ela está a interceder junto ao desigual de modo a garantir-lhe uma igualdade que pode ser ameaçada. Ao fazer isso, ela afirma tanto a união entre licenciador e licenciado como o direito de ambos de realizarem operações que só os “donos” dos programas seriam capazes (alterar, modificar e distribuir). Autor e utilizador equivalem-se, têm os mesmos direitos sobre o software, desde que garantam esses direitos também a outros. Aqui, não é importante o que ela faz ou não faz realmente, se ela efectivamente consegue garantir os direitos do licenciado frente ao exterior, mas o que ela diz fazer, algo que pode ser verificado na materialidade do texto.

    Concluindo

    a comparação

    Algumas marcas encontradas no discurso devem ser retomadas aqui. A mais importante delas parece ser a tentativa de nivelamento, de estabelecimento de igualdade colocada pela GPL. Ao permitir o uso irrestrito, estabelecendo uma autorização prévia e extensiva a qualquer utilizador, ela coloca o produto software como um bem comum.

    Já ao permitir alterações, modificações e a livre redistribuição, essa licença denuncia a existência de uma desigualdade fundante, entre os que têm e os que não têm. Com a condição de que não haja tentativas de reestabelecimento dessa desigualdade, de apropriação daquilo que ela propõe que seja de todos, ela postula o direito à modificação do código, em última instância, ao trabalho, seja permitido a todos.

    Penso que é principalmente ao oferecer a liberdade para a alteração e distribuição do código a qualquer um que a licença livre afirma que a desigualdade não é condição necessária à vida social. Ao fazer isso, a licença estabelece que não é necessário que os utilizadores se distingam dos produtores, que haja sujeitos em condições desiguais em relação à posse do meio de produzir mercadorias.

    Não é à toa que a licença livre, ou o movimento social que a utiliza, são classificados por aqueles que pertencem à esfera da norma estabelecida, da desigualdade que não deve se tornar aparente. Não só a denúncia da desigualdade como a tentativa de se construir uma outra ordem, são ligadas à anormalidade, às patologias, classificados como “vírus” ou “cancro”. Também não é gratuito que as reações a essas afirmações tenham sido inflamadas e partido de diversos lugares. Um ponto central foi tocado, a existência da desigualdade foi negada e os desiguais foram tratados como não pertencentes a esse mundo.

    Software Livre

    x Open Source

    Na comunidade software livre, existe uma constante disputa sobre os nomes e as palavras utilizadas. O próprio nome da comunidade é controverso. Enquanto uns preferem software livre outros falam em código aberto. Alguns, nesse caso não muitos, dizem que tanto faz e que é possível até mesmo somar os nomes 1. O nome do principal sistema operativo livre também é objecto de controvérsias, e aqui sim muitos afirmam que são sinónimos. Enquanto alguns se referem a ele simplesmente como Linux, outros fazem questão de dizer GNU/Linux 2. Essa discussão, às vezes, torna tudo muito mais confuso para quem não participa do debate. Seria muito mais simples se houvesse algum tipo de uniformização nesse vocabulário, sugerem alguns, o leigo poderia tomar parte dele muito mais facilmente.

    Mas optar por um nome ou por outro não é algo trivial. Dizer é colocar-se no mundo, é assumir posição. Afinal, há alguma diferença entre falar Linux ou GNU/Linux? Ou entre dizer-se um adepto do movimento pelo software livre ou do movimento de código aberto? Há sim. A opção por um nome ou por outro marca, para além de possíveis diferenças técnicas, a posição discursiva ocupada pelo sujeito em relação à história do movimento.

    De acordo com Orlandi, «ao falarmos, filiamo-nos a redes de sentidos mas não aprendemos como fazê-lo, ficando ao sabor da ideologia e do inconsciente. Por que somos afectados por certos sentidos e não outros? Fica por conta da história e do acaso, do jogo da língua e do equívoco que constitui nossa relação com eles. Mas certamente o fazemos determinados pela nossa relação com a língua e com a história, pela nossa experiência simbólica e de mundo, através da ideologia».

    Por: RAFAEL EVANGELISTA *

    * Dissertação de mestrado, com o mesmo nome, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Campinas, Brasil. Adaptado para a norma portuguesa europeia.

     

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