Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 20-12-2008

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Noite de Reis

    Há muito vinha insistindo com o meu pai para que me mandasse fazer uns socos como os dos mais crescidos. Ele fazia ouvidos moucos às minhas solicitações, mas, quando o senhor Abílio e os dois filhos mais velhos transferiram para nossa casa a sua oficina de sapateiro, a fim de “tratarem” do calçado da família, renovei o desejo tantas vezes manifestado. Pouco entusiasmado com a ideia, deu, no entanto, ordens ao seu amigo para que “caprichasse” nuns tamanquinhos com brochas e tudo.

    Eu teria os meus oito ou nove anos, mas recordo muito bem a imagem do sapateiro e dos seus filhos, o mais novo dos quais poucos anos mais velho do que eu, sentados à volta da braseira, junto à janela da sala de jantar, criteriosamente entregues ao trabalho de furar o couro à sovela, introduzir nos buracos cerdas de porco, enfiar e puxar os fios reforçados com pez e de pregar com cerzetas o couro, já afeiçoado, ao piso em madeira de amieiro previamente preparado a golpes de enxó e formão. Finalmente, o piso era recoberto de brochas para proteger a madeira nos atritos com o solo pedregoso ou lamacento. De quando em quando, a minha mãe ou alguém a seu mando vinha buscar a braseira para a encher com brasas vivas, mantendo o ambiente sempre aquecido. Eu ficava ali fascinado com a obra que nascia daquelas mãos, ora concentrando-se na obra, ora estendendo os braços a puxar o fio.

    Tão impressiva foi a imagem que sempre se me afigura aquele recanto junto da janela quando ouço ou leio descrições da chuva que bate nas vidraças ou dos flocos de neve bailando no ar até poisarem no chão, nas árvores, nas plantas e nos telhados das casas, estendendo sobre tudo um alvíssimo lençol de linho nupcial.

    A mudança na atitude do meu pai tinha muito a ver com a projectada viagem a Chacim, aldeia do concelho de Macedo de Cavaleiros, para cantar os Reis à tia Marquinhas, sua irmã, que lá vivia. Naquela época, fazer uma viagem de muitas dezenas de quilómetros, em parte a pé, em parte de comboio, não era tarefa de somenos. O tio Zezé, que morava connosco, aplaudiu a ideia; a tia Antoninha também não levantou dificuldades na perspectiva de rever a sua única irmã depois de alguns anos de ausência; o tio João fora mais difícil de convencer por melindres antigos em relação ao cunhado, questões de partilhas, mas acabou por anuir; a tia Piedade, envolta nos trajes e nas tristezas de viúva do tio Alfredo, recusou partilhar daqueles momentos festivos, mas autorizou a Lena (Madalena), filha adolescente, a seguir sob a protecção da tia Antoninha; eu acompanharia o grupo, ansioso por brincar com aqueles primos que há muito não via.

    Um empreendimento de tal monta em pleno Inverno transmontano requeria alguns cuidados. O meu pai consultou o Seringador, velho amigo dos agricultores, que não regateou os seus pareceres: tempo frio a impor agasalhos, mas sem chuva ou neve; Lua Cheia, céu limpo e geada durante a noite. Por conseguinte, boas condições para viajar. Eu rejubilava até porque iria estrear os meus socos novos, espécie de prenda do Menino Jesus.

    No dia previsto, pusemos pés ao caminho a fim de apanhar o comboio misto que saía rumo ao Tua a meio da tarde. A caminhada era longa, duas e meia a três horas. Ainda não tinha saído da povoação e já os meus delicados pés reclamavam do sacrifício a que tinham sido sujeitos. Não quis dar parte de fraco e aguentei com estoicismo a subida da serra. A descida foi mais dolorosa. O meu pai, que já notara os desentendimentos entre mim e o novo calçado, seguia com preocupação, atento à necessidade de me levar às cavalitas. Francamente, não sei como pude suportar a viagem até à estação do caminho – de – ferro em Bragança, mas aguentei com galhardia. Ao entrar na cidade, todos mudavam de calçado e, então, pude ver que tinha feito burras em ambos os calcanhares. Ainda bem que estávamos adiantados em relação ao horário. O meu pai, que sempre se mostrou inexcedível em zelo quando se tratava da saúde dos filhos, levou-me à farmácia de que era cliente e pediu que me fizessem os curativos necessários. Na estação, fizeram o favor de arrecadar os socos até ao dia seguinte. Não voltei a vê-los nem guardei saudades. Disseram-me que, na estação, não os conseguiram encontrar, mas creio bem que o meu pai deve tê-los oferecido a alguém que tivesse um filho da minha idade.

    O nosso destino imediato foi a estação do Azibo. Aproveitámos a viagem para ensaiar uma canção diferente das que eram tradicionalmente cantadas nas nossas aldeias e que alguém nos tinha ensinado. Obviamente, não poderei aqui reproduzir a música, mas nunca mais esqueci a letra:

    “Haja alegria, paz nos corações,

    Para longe a mágoa, para longe a dor,

    Se o ano findo foi p’ra vós ridente, que este seja ainda melhor.

    Mil felicidades nós vos desejamos, uma vida alegre, cheia de fulgor

    Nem uma nuvem, nem um desgosto,

    E Boas Festas, Feliz Ano Novo, meus senhores!

    Quem lhes vem cantar os Reis,

    Por esta noite tão fria,

    Deseja que esta família

    Viva sempre em harmonia .

    Haja alegria, paz nos corações

    Era noite quando o comboio deu entrada na estação. Tínhamos pela frente alguns quilómetros por caminho inóspito, em terreno muito irregular e sinuoso até encontrarmos a estrada que os nossos pés imploravam. A lua benfazeja inundava de luz a paisagem e mostrava-nos os obstáculos que, sem ela, tornariam bem mais penosa a caminhada. Atingida a estrada tudo se tornou fácil e, apesar do frio, a nossa disposição melhorou bastante. Por entre olivais e terras de cultivo onde despontavam, ainda débeis, os primeiros rebentos de cereal, seguíamos concertando as vozes para um melhor desempenho na hora, que se antevia próxima, de homenagear os nossos familiares. Passada a aldeia de Olmos, a ansiedade aumentava. E não demorámos a ver as primeiras casas de Chacim.

    Nos poucos degraus da escada organizámos o grupo e, as primeiras frases fizeram-se ouvir em crescendo. Dentro de casa as pessoas agitavam-se, ouvíamos os gritos dos primos, alvoroçados com a perspectiva de visitas, alguém corria à porta, tentando abri-la para reconhecer os cantores. De fora, os mais fortes seguravam a aldraba da porta a impedir esses intentos. Os da casa só o conseguiram depois que a cantoria chegou ao fim. Então, à surpresa sucederam-se os abraços, os beijos e o encaminhamento dos recém-vindos para junto da lareira. A mesa ainda estava posta e os petiscos vinham mesmo a calhar depois de um esforço tão grande. Os adultos conversavam animadamente e nós, os mais pequenos, apressámos a refeição para termos mais tempo de brincar.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

    · Ermesenda ou Ermesinda
    · Carta de doação

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].