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    Arquivo: Edição de 10-07-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Meu Povo em gente

    Não foi aquele o céu que vi pela primeira vez nem isso tem a menor importância. É a terra do meu pai, dos meus avós de alguns dos meus irmãos e foi na casa que a todos serviu de morada que vivi a fase mais importante da minha vida. Alimonde está gravada a fogo na minha memória.

    Cheguei ali com cinco anos incompletos na companhia dos meus pais que tinham emigrado para o Brasil e da minha irmã Lúcia de quatro meses. A vista daquelas casas de pedra xistosa, pequenas e cobertas de telha rústica escurecida pelo tempo, em oposição ao quadro de maravilha que o meu pai pintava da sua terra, provocou em mim uma reacção de desolado espanto:

    – Hi, mamãe, que Portugal é esse? – exclamei talvez julgando que nos tivéssemos enganado no caminho.

    A minha mãe passou, com certeza, um mau bocado para me explicar, mas nunca me disse o que, na ocasião, cauterizou a ferida aberta na minha alma.

    Do que eu tenho a certeza é que aprendi a amar aquela aldeia pobrezinha, reclinada no seio da montanha, um maciço da Serra de Nogueira, e dormindo um sono de séculos, aquelas habitações caiadas de branco ou em pedra nua, rodeadas de castanheiros seculares, de cerejeiras a que a falta de trato por sucessivas gerações remeteu para um estado entre o bravio e o enxertado, e de elegantes negrilhos na sua roupagem verde-escura, separadas por ruas tortuosas de terra, que no Inverno se transformava em lamaçal e no Verão se erguia em nuvens de poeira, deixando a descoberto a ossatura em dura rocha, desgastada pelas rodas ferradas dos carros de bois. Mais crescido, apercebi-me da poesia que emanava dos pombais em forma de ogiva incompleta, como ferros de passar roupa em descanso, e também eles completamente caiados de branco.

    Complementam-na três elementos de fundamental importância para a vida dos seus habitantes:

    uma colina fronteira de cujo alto se contempla, no conjunto e em detalhe, toda a aldeia e onde a devoção do meu tio Manuel Nunes o levou a mandar construir uma capelinha em honra de nossa Senhora de Fátima; um rio pequeno que cachoa ao fundo da montanha, de que muitos não conhecem o nome mas que é muito importante por ser “o rio da minha terra”, por ter desempenhado uma função iniciática para os mancebos que ali se iam banhar na véspera da inspecção militar, por movimentar três moinhos onde “o pão nosso de cada dia” era transformado em farinha, etapa indispensável antes de chegar à mesa de cada um e por albergar trutas, barbos, bogas, escalos e outras espécies ainda livres da poluição que há muito altera o seu habitat noutros cursos d’água.

    A serra, lá no alto, coroada de carvalhos e sardões que protegiam do sol inclemente pastores e seus rebanhos nos dias quentes de Verão, ofereciam lenha para aquecimento dos corpos e confecção dos alimentos, folhas que o vento do Outono deixava amontoadas pelo chão e que, noutros tempos, serviam para cobrir os caminhos da aldeia formando estrumeiras que, ao fim de certo tempo, eram levada para fertilizar as terras.

    – Não há dúvida de que é uma terra pobre, mas muito pitoresca e as pessoas duma simpatia incrível! – dizia o médico José Luzio, amante da natureza, que ali se deslocou para a conhecer e onde encontrou espécies vegetais poço conhecidas.

    Aqui, a palavra “povo” tem um duplo significado. Pode querer dizer “povoado”, “povoação” como, lá na sua, pretendia dizer o tio João Carracó, referindo-se ao jumento que o transportava:

    – É mui ligeiro, mas tarda em chegar aos povos.

    Serve igualmente para indicar o conjunto dos habitantes da terra como desejava o representante da Junta de Freguesia, ordenando aos conterrâneos no fim da Missa dominical:

    – Espere o povo no auditório!

    Este povo era formado por gente de boa índole, generoso e solidário, embora algo irrequieto na sua vivência quotidiana. E, como é norma desta sagrada terra lusitana, os povos vizinhos privilegiavam o lado negativo dos seus habitantes, nas conversas de soalheiro, corria a fama de que se tratava de pessoas pouco recomendáveis, porque atafulhavam de queixas o tribunal da comarca. Quem assim falava desconhecia o tio João Grilo, morador da primeira casa à entrada da aldeia e que, mal pressentia a chegada de qualquer forasteiro, saía a convidá-lo para comer e beber em sua casa.

    Por: Nuno Afonso

     

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