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    Arquivo: Edição de 20-09-2007

    SECÇÃO: Arte Nona


    A importância de um argumento genial

    Sendo por essência e definição uma arte sequencial – como o Cinema – a Banda Desenhada está longe de ser uma mera colecção de desenhos (ou vinhetas) valendo por si só.

    O papel de um argumento na obra de Banda Desenhada não tem o potencial de ser, apenas, valorativo, embora em muitos casos um argumento indigente pouco acrescente aos bonecos. Mas há casos – raros – em que a excelência do argumento quase coloca a obra a nível tão elevado que praticamente seria impossível destruí-la por um qualquer desenhador mais inábil.

    Um desses casos de excelência, servido além do mais por um grafismo à altura do argumento é a justamente premiada série de José Carlos Fernandes “A Pior Banda do Mundo”.

    Trata-se de um argumento de tal modo bom – digamos genial – que quase se tem pena de que José Carlos Fernandes, pesem embora as já inúmeras traduções da obra –, seja um quadrinista português com o que isso significa em termos da dificuldade de tornar universal o que não deve ser, de modo nenhum, periférico.

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    “A Pior Banda do Mundo” é, logo pela sua concepção, uma obra fora do vulgar.

    Concebida em quatro volumes, é um autêntico tratado que, nas suas quatro partes, nos dá a visão total do mundo esquizofrénico que não é outro que o nosso próprio, a partir das extrapolações, caricaturas, estilizações, que vai fazendo do nosso quotidiano.

    Nenhuma área da vida – íntima ou pública – lhe escapa.

    E poucas obras da literatura (e da Banda Desenhada) não apenas portuguesa, são assim tão radicalmente políticas como “A Pior Banda do Mundo”.

    Logo no primeiro volume, “O Quiosque da Utopia”, se assoma o carácter demolidor, implacável deste olhar de José Carlos Fernandes pela vidinha banal, o embuste, o carreirismo «ao serviço do povo», etc., etc..

    Está aqui o olhar de Kafka, Orwell, Zamiatine e outros anti-utopistas.

    Vejamos por exemplo: «Entre as avenidas Bakunine e Tomas Moru, existe um quiosque destinado a recolher as sugestões dos cidadãos. Em letras já um pouco apagadas pode ler-se: “O Futuro que estamos a construir é para si. Por isso queremos saber qual é a sua utopia. Deixe aqui a sua sugestão. Obrigado».

    O segundo volume deste Tratado (termo que, aliás, José Carlos Fernandes virá a utilizar mais tarde, no “Tratado de Umbrografia”, consolida o estilo de obra de referência e consulta sobre o estado do mundo.

    Os heróis deste segundo tomo – “O Museu Nacional do Acessório e do Irrelevante” seguem o mesmo trilho do primeiro. Destaque para aqueles que dão o título geral à obra – os músicos Sebastian Zorn (saxofone tenor), Idálio Alzheimer (piano), Ignacio Kagel (contrabaixo) e Anatole Kopek (bateria), que incansavelmente, desde há três décadas, ensaiam para se apresentarem finalmente diante do público.

    O Museu prossegue assim um registo inverosímil, surrealista e, contudo, retrato fiel do que pretende retratar.

    À laia da deriva situacionista, José Carlos Fernandes vai deambulando por aí.

    Em “As Ruínas de Babel”, esta impossibilidade de comunhão humana parece bem clara nos vários episódios curtos de que se compõe a série, na qual, não se encontra a continuidade formal de um enredo, mas mais o emparceiramento abundante e sistemático de referências sobre os mais variados aspectos da vida, da cultura, da ciência e da arte.

    Comecemos pelo exemplo do Parque de Perversões Mengel, uma das mais desbragadas tiradas de humor que, aqui, escapa do tom sempre contido de José Manuel Fernandes: «...Uma obscenoteca de 50.000 volumes! O grande carrossel S&M Uma sex shop drive-in! O voyeuroscópio! E um jardim zoófilo com um leque de escolhas incrível: de alpacas a papa-formigas.

    Mas outros capítulos mais moralizantes podem também aí encontrar-se, como “O Manual de Instruções para a Vida Quotiana”, ou “Os Inabaláveis Princípios Morais”.

    A obra termina com o quarto tomo, “A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto”, reforçando ainda mais a ideia de uma torrente avassaladora, de uma mordacidade quase austera e implacável, como se não fosse o laborioso produto da mente do autor, mas fluxo automático gerado como na produção de um sonho. Por exemplo, a crítica de “A Demanda do Graal Sónico”, paródia do tecnologismo serôdio, ou “A Fundação para o Recuo da Ciência”, no seu oposto.

    A estrutura é sempre assente em narrativas muito curtas, de duas pranchas, que se sucedem imperturbavelmente.

    Grafismo de cores quentes, entre castanhos e amarelos muito torrados.

    Quanto ao importante, «... a estupidez não é mais do que a sobreavaliação da nossa própria inteligência.

    Há quem defenda que é a exposição crónica aos mass media e ao seu pot pourri de frivolidades que instila nos espíritos sugestionáveis a fátua ilusão de que se dominam todas as esferas do conhecimento».

    Por: LC

     

     

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