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    Arquivo: Edição de 10-07-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Jubinal

    Chamavam-lhe Jubinal, corruptela de Juvenal, digo eu que não o conheci. Mas não era apenas o nome que o tornava invulgar, em toda a sua vida devem tê-lo considerado um espécime raro, dadas as histórias que corriam na aldeia a seu respeito.

    Os nomes atribuídos na pia baptismal foram, ao longo de séculos, inspirados por um membro da família - um avô ou avó, um tio, um antepassado distinto ou alguém conhecido e respeitado pela comunidade - num misto de homenagem e rito mágico, julgando assim transferir para a pequena criatura que o recebia as virtudes do modelo. Podia suceder que o pai ou a mãe tivessem conhecimento de um nome raro e apreciado, fazendo questão de atribuí-lo ao filho. Mais provável, no entanto, era que estivesse adstrito ao padrinho da criança que, desobrigado de concessões a membros da família actuais ou passados, quisesse dar asas às suas próprias referências, fossem elas nomes de personagens de obras literárias cujas marcas perdurassem no seu espírito ou de autores famosos de épocas já consolidadas na memória colectiva. O padrinho do Juvenal, devia ser versado nas Letras, provavelmente admirador do poeta satírico latino com esse nome, que exerceu enorme influência nos primórdios do Cristianismo e que, a partir do século V, se tornou muito popular no mundo ocidental.

    O convite para ser padrinho, constituindo uma honra para a família do baptizando em virtude do respeito que o convidado lhe merecia, trazia implícita uma relação de dependência. Daí que as suas sugestões fossem indiscutíveis, a fé no seu bom-gosto sobrepunha-se às preferências dos progenitores. "Se ele, que é um homem distinto e de muitas letras, acha que é um nome bonito, quem somos nós para pensar o contrário?" Casos houve, no entanto, em que esse papel e essa consideração foram atribuídos à madrinha.

    O Juvenal nascera enfermiço, mas logrou sobreviver, não obstante as limitações em higiene, na alimentação e em cuidados de saúde que a família lhe podia proporcionar. As carências existentes eram compensadas pelo carinho dos pais e irmãs, que nunca lhe faltou. O pai, lavrador de minguados recursos, a cada passo, dizia:

    – Morram-me as vacas, morra-me a burra, morra-me a cabra, só não quero que me morra o meu Jubinal.

    O rapaz não morreu, botou corpo e esperou com ansiedade o tempo de "ir às sortes". Quando os do seu ano foram convocados por edital afixado na porta da igreja, o seu nome não constava da lista. Enorme decepção para o próprio, incredulidade em toda a população! Nunca se ouvira dizer que algum mancebo tivesse sido olvidado em momento de tamanha importância para a vida de um homem. O Dia da Inspecção era assim a modos que a porta de acesso à idade adulta. Na véspera, todos iam a banhos para o rio que passava a cerca de dois quilómetros. Os que não sabiam nadar ou tinham pouca confiança nos seus dons de anfíbios ficavam-se pela Caldeirinha, espécie de piscina escavada na rocha; os mais afoitos atiravam-se ao Pióto, um poço mais fundo imediatamente abaixo e todos se divertiam à grande. A festa prosseguia na taberna, onde petiscavam e bebiam do carrascão que vinha das terras quentes, prolongando-se noite adentro numa alegria esfuziante. Já eram homens, aceites como tal pela comunidade.

    Impõe-se dizer que o pai do Juvenal tratou de buscar a razão do esquecimento ou lá o que fora, responsável pela ausência do nome do filho em hora tão importante da sua existência. Procedeu-se às indispensáveis averiguações. Semanas mais tarde, o pai do mancebo recebeu uma carta informando-o de que não havia nenhum registo de nascimento referente ao seu filho. Soube depois que tal falha tinha uma explicação: quem lavrara o assento fizera-o de maneira a transmutar o sexo da criança e assim, como as raparigas não iam à tropa, o Juvenal, Juvenala, Juvenália ou o que quer que tivessem escrito, não era reconhecido como homem. O progenitor ficou furioso quando o mistério se esclareceu, mas fez as diligências necessárias para que o erro fosse reparado a tempo de o moço retomar a sua dignidade ofendida e acompanhar os demais à Inspecção.

    A maioria dos jovens nascidos no princípio do século XX em terras do interior possuíam, do país e do mundo, uma ideia em escala muito reduzida cujo raio não excedia os quilómetros que separavam a sua aldeia da vila ou cidade sede do concelho que, ocasionalmente, visitavam nos dias de feira para negociar animais ou produtos agrícolas. Em cada aldeia celebrava-se, anualmente, uma festa de cariz, ao mesmo tempo, religioso e profano e ali se encontravam rapazes e raparigas das povoações circunvizinhas, tempo propício para comerciar sentimentos de amor.

    O Juvenal acompanhava o pai às feiras e acorria a todas as festas. Nunca tinha equacionado a possibilidade de ir mais além. Mas, um dia, o progenitor disse-lhe que teria que deslocar-se a Macedo, lugar de que o rapaz não tinha qualquer notícia. Ficava a várias dezenas de quilómetros, viagem que teria de ser feita em parte a pé e em parte de comboio. Iriam juntos, porque havia uma questão de partilhas, terras que um tio solteiro deixara em herança, e queria tê-lo ao pé de si para saber o que lhes pertenceria, proporcionar-lhe apoio e conhecer os parentes que lá tinham. O rapaz não ficou entusiasmado, mas acedeu ao pedido.

    Na data combinada, dirigiram-se a Bragança onde apanharam o comboio, meio de transporte que lhe era completamente desconhecido. À medida que o comboio-correio se deslocava no seu andamento fatigado, o Juvenal via o seu mundo ficar cada vez mais distante, as horas a passar como se fossem anos, arvoredos, lameiros, terras umas cultivadas e outras em pousio, fraguedos, rios, paisagens diversas que, progressivamente, o comboio engolia, e a ditosa Macedo que nunca mais chegava… Quando, afinal, desembarcaram, a meio de uma tarde soalheira, o nosso homem confidenciou ao autor dos seus dias:

    - Ó senhor pai, olhe que o mundo é bem grande!

    Por: Nuno Afonso

     

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