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    Arquivo: Edição de 30-05-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    «Esta vida são dois dias...»

    Ao longo de séculos, o povo transformou em aforismo muitas das reflexões que a vivência colectiva proporcionou. Essas preciosidades constituem um acervo de que as pessoas lançam mão sempre que uma boa oportunidade se lhes depara.

    A consciência da transitoriedade da vida que tanto macera os espíritos mais lúcidos, é encarada pela gente simples com certa dose de fatalismo de que não está ausente uma pitada de humor. De que vale interrogar-se e pretender achar uma razão que justifique uma existência à nascença já sentenciada? Os seres vivos nascem, crescem, reproduzem-se e morrem, sem nenhuma excepção. Assim está determinado, não é por nos rebelarmos, nos angustiarmos, nos nausearmos que algo mudará. Para muitos, através dos séculos, a promessa de uma vida eterna, tem servido de conforto e alimentado a esperança.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    «Esta vida são dois dias… [Pausa]. …e um já passou». Julgo que daria jeito se, em vez de dois, fossem três e, ainda melhor, se fossem quatro. Não que esses números, simbólicos que são – ou não será assim? –, mudassem fosse o que fosse na existência de cada um. Esse número igualitário significa precisamente que o destino é o mesmo para todos, independentemente de uns viverem mais e outros menos anos. Também não importa se a esperança de vida é actualmente bem mais ampla do que foi em épocas remotas. A Demografia afiança que existe hoje um número significativo de pessoas centenárias e todos podemos constatar esse facto pelos meios de comunicação social. Diariamente chegam imagens pela televisão que mostram, por exemplo, uma senhora espanhola de cento e oito anos que faz questão de alimentar a sua paixão clubística, apoiando a equipa do seu coração onde quer que ela jogue; de um professor universitário japonês com cento e quatro, se os meus ouvidos não me traíram, que traça, num quadro, complicadas fórmulas algébricas; de um Emídio Guerreiro que, pouco antes de falecer, discorria, lucidamente, frente às câmaras de televisão, de um Fernando Vale, médico há muito reformado, que nunca deixou de prestar auxílio aos mais necessitados, de um Fernando Pessa que nos instruiu e divertiu até ao fim dos seus dias. Mas, se uns têm uma vida longa e outros há que morrem ainda crianças ou já mais crescidos, vítimas de doenças como o cancro ou a sida, de acidentes vários ou de vícios como as drogas, ninguém escapa à inexorabilidade do destino comum.

    A razão pela qual apreciaria mais que a vida fosse três dias ou mesmo quatro é meramente psicológica. Esquecendo o facto de a expressão ser metafórica, não parece indiferente que metade da vida já tenha passado até para os que pouco viveram ainda. Um dia é metade da vida, mas podia ser apenas um terço ou um quarto e sentir-nos-íamos muito mais confortáveis mesmo que já tivéssemos transposto um nível etário significativo. Se um dia já passou, ainda tenho dois para viver, diríamos, ou então, ainda tenho três dias para viver. Porém, como contesta o idoso aldeão quando alguém elogia o seu bom aspecto e, ao saber a sua idade, afirma gentilmente: «Olhe que não parece!»:

    – Os anos já cá estão e ninguém mos tira!

    Assim discorrendo, veio--me à lembrança a história daquele fradinho que não conseguia entender outro aforismo frequentemente ouvido: «a nossa vida, face à Eternidade, é como o dia de ontem que já passou». Rogou a Deus que lhe iluminasse o espírito de maneira a alcançar o significado de uma verdade em que tanto insistiam os Doutores da Igreja. Rezou com tamanho fervor que o Senhor ouviu a súplica. E uma manhã, ao sair da capela do convento após o ofício de Laudes, sentiu--se maravilhado com o gorjeio de um passarinho, e dirigiu-se para o lugar donde provinha o canto. A ave canora voejou então de ramo em ramo, de árvore em árvore, seguida pelo bom do religioso, totalmente dominado por aquela inexplicável fascinação. Caminhou assim ao longo de caminhos e veredas, por plainos e colinas, prados e bosques. Não tinha fome nem sede, calor ou frio, muito menos cansaço. Do seu espírito desapareceram as preocupações, esqueceu horas e deveres, num encantamento de que também não tinha consciência, longe de todas as categorias de que a vida humana se entretece.

    Houve, no entanto, uma hora em que a realidade se lhe impôs e tomou o caminho de regresso. Mas a jornada fora longa e andou um pouco ao acaso. Sentia-se, agora, fatigado, muito fatigado. Tinha dado só um breve passeio, como era possível demorar tanto a chegar? Quando finalmente avistou o que lhe pareceu ser o seu convento, uma estranha sensação o invadiu. Estava tão diferente! A propriedade que cercava o edifício não era a mesma, havia outras culturas e outras construções. Ao aproximar-se mais, encontrou homens com hábitos modificados, rostos que nunca tinha visto, falas divergentes da sua. Perguntou que ordem religiosa era aquela e como se chamava o lugar. Os inquiridos estranharam a sua linguagem e o mesmo acontecia consigo em relação ao que lhe diziam. Mas o convento era aquele, sem dúvida, também a mesma ordem e a mesma localidade. Pronunciou o nome do abade, mas responderam-lhe que esse nome não era ali conhecido.

    O nosso frade, confuso, não sabia o que fazer ou o que dizer. Levaram-no à presença do abade, mas ficaram a olhar um para o outro, atónitos. Identificou-se e referiu factos de que tinha participado, nomes de outros membros da comunidade, descreveu a composição do edifício. Finda a conversa, o superior deu ordens para que o instalassem numa cela destinada a visitantes ou peregrinos e lhe dessem de comer. Enquanto isso, foi consultar os arquivos da ordem à luz das indicações que o frade lhe dera. Chegou à conclusão de que ele vivera ali há trezentos anos.

    Quando o abade foi visitá-lo e lhe deu conta do que apurara, o frade compreendeu afinal o que tanto pedira a Deus. Pouco depois falecia rodeado de todos os actuais membros da ordem.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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