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    Arquivo: Edição de 30-04-2007

    SECÇÃO: Arte Nona


    Prancha de STASSEN
    Prancha de STASSEN

    "Déogratias" - a mão pérfida do colonialismo

    Acontecimento horrível da história recente da Humanidade,o genocídio do Ruanda, ocorrido em 1994, constitui, infelizmente, abundante matéria dramática, rica de episódios que fazem com que este tema histórico tenha já sido objecto de enredo cinematográfico e, como é o caso que hoje abordamos, também tema de guião para a Banda Desenhada. A obra de que falamos hoje é “Déogratias”, do belga Jean-Philippe Stassen, publicada originalmente em 2003 pela Dupuis, e traduzida (por Pedro Cleto) e editada em Portugal logo no ano seguinte, pela Asa (com adaptação de Maria José Pereira e legendagem de Jorge Ribeiro).

    Ex-colónia belga, mas com uma marcada influência francesa, os principais grupos étnicos, hutus e tutsis (também existem os residuais twa, povos pigmeus, de mais baixa estatura, de que o livro de Stassen nos fala e que constituíam a mais antiga etnia presente no país) são levados a uma artificial rivalidade e antagonismo, em nada condizente com a sua história de séculos de convivência harmoniosa entre povos sobretudo dedicados à agricultura ou à pastorícia.

    Os motivos desta animosidade, sobretudo da maioria hutu para com os tutsis não podem desligar-se da grave crise económica que afectou o Ruanda a partir de 1989, com a queda brusca dos preços do café no mercado internacional (calcula-se que o Ruanda tenha perdido cerca de 40% dos seus rendimentos) e com a fome gerada pela escassez de alimento devida à crise e à substituição extensiva das culturas de subsistência pelas culturas industriais nas mãos das grandes companhias coloniais europeias.

    Estando à altura da sua independência o poder entregue sobretudo à minoria tutsi, mas posteriormente maioritariamente nas mãos dos hutus, as escaramuças entre as duas etnias vão levar à criação de grupos armados organizados que, com a morte num atentado ao avião do presidente Juvenal Habyarimana e o avanço da Frente Patriótica Ruandesa (tutsis), irão desencadear o planeamento cuidadoso do genocídio, que afectou sobretudo a minoria tutsi, invocando os perigos do avanço da força rebelde. Os acontecimentos do Ruanda foram de uma extrema crueldade, calculando-se que tenham sido mortas mais de 500 mil pessoas, ocorrido um sem-número de violações e perpetrados toda uma série de crimes com a complacência, para não dizer, organização do poder em exercício. O fornecimento de armas de fogo e armas brancas, apesar da pobreza do país, esse nunca esteve em dúvida.

    Com “Pawa”, editado pela Delcourt, em França, em 2002, já Jean-Philippe Stassen tinha abordado a questão do Ruanda. O seu “Déogratias”, no ano seguinte, valer-lhe-á o Prémio René Goscinny e o Prémio France-Info.

    Mas o tema das minorias étnicas é frequente na obra de Stassen, como aliás o nota a apresentação do quadrinista na edição portuguesa da Asa, que expressamente refere “Les Aventures d’Ahmed en Belgique”, “Le Bar du Vieux Français” (com Denis Lapière, Dupuis, tomo I em 1992 e tomo II em 1993), e “Louis le Portugais” (Dupuis, 1998). Tal poderá dever-se, eventualmente, a uma particular sensibilização que decorre do facto do quadrinista, nascido em Liège, na Bélgica, em 1966, ser filho de pai flamengo e mãe de origem judaica.

    Em Portugal, além de “Déogratias”, que aqui abordamos, está também publicado, da sua autoria, igualmente pela Asa, mas no ano seguinte, o álbum “Crianças” (“Les Enfants”, Dupuis, 2004), ainda dedicado à tragédia do Ruanda e obra menos “negra” que a história do atormentado twa Déogratias. Dos temas africanos pode, aliás, dizer-se que é um especialista, já que Stassen conhece muito bem o continente, tendo viajado por Argélia, Marrocos, Burkina Faso, Senegal, Mali, Benim, Costa do Marfim, Gana, Togo, Níger, Nigéria, mas também África do Sul, Moçambique, Tanzânia, Uganda, Burundi e Ruanda. Mas o conhecimento da situação ruandesa vem-lhe sobretudo do facto de actualmente trabalhar e viver no Ruanda.

    Além das obras já citadas, Stassen publicou “Bahamas” (com Denis Lapière, Edições Albin Michel, Paris, 1988), “Bullwhite” (também com Denis Lapière, Albin Michel, Paris, 1989), e “Thérèse” (Dupuis, 1999).

    Em jeito de parábola, Déogratias, o herói (ou anti-herói, se preferirmos, já que se trata de um alcoólico, de mente profundamente perturbada, que é carrasco e pobre vítima no torvelinho dos acontecimentos), não é hutu nem tutsi, mas um twa, cujos relacionamentos, com as mulheres, com os brancos, com os hutus que desencadeiam os massacres, revelam muito do que era a sociedade ruandesa da época retratada.

    Déogratias crê ser um cão, e como cão é inimputável dos crimes que comete durante o genocídio. Em boa verdade, ele é dos menos culpados.

    A obra vai apresentando algumas das personagens daquele mundo: o bom missionário Philippe e o seu hipócrita prior Stanislas, Vedette, a prostituta e as suas duas filhas já adolescentes, Bénigne e Apollinaire, o xenófobo professor, humilhando os seus alunos tutsis, Bosco, o lúcido anti-colonialista, Juvenal, o hutu envolvido nas milícias assassinas, o francês “Ajudante-Chefe”, que movia por trás os cordelinhos do massacre, e o seu criado tutsi Augustin – uma das muitas vítimas –, toda uma panóplia de personagens que vão tecendo entre si uma intriga verosímil e dinâmica.

    Quanto ao grafismo, na obra a cores, predominam os tons castanho e azul e os ambientes sombrios. O pesadelo adivinha-se...

    Por: LC

     

     

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