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    Arquivo: Edição de 30-03-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    A herança do abade

    Houve, em tempos, um abade que era muito estimado pelos paroquianos devido à sua bondade e à maneira como se entregava às tarefas pastorais. Não tinha mãe ou irmã que lhe fizesse companhia, ele próprio cuidava da casa, preparava as refeições, tratava da sua roupa. Oriundo de família pobre, aprendera a prover-se sozinho. Atendia os que o procuravam numa salinha acolhedora mas sem luxos: uma mesa, algumas cadeiras e estantes com livros.

    Após ter recebido ordens, aquela fora a sua primeira paróquia. Em breve, conhecia todos os paroquianos, partilhava das suas alegrias e tristezas, visitava e confortava os doentes, interessava-se pelos que emigravam em busca de vida melhor. Ria com as crianças, jogava com os rapazes ao ferro ou à malha e não levava dinheiro aos mais pobres pelos seus serviços.

    O inverso também era verdadeiro. Os camponeses ofereciam-lhe tudo de que precisava para a sua alimentação, davam-lhe feno e palha para o cavalo em que se deslocava, lavravam e semeavam as terras do passal, traziam-lhe a lenha para a lareira em que cozinhava as refeições e se aquecia nas longas e frias noites de Outono e Inverno.

    Não obstante os múltiplos afazeres, sobrava-lhe sempre algum tempo para ler. Possuía numerosos livros, muitos sobre matérias religiosas, outros acerca de variados assuntos, porque amava o conhecimento e queria estar preparado para tornar as suas homilias mais actualizadas e eficazes. Conversava com os lavradores sobre novas técnicas agrárias, culturas alternativas, maquinaria adequada ao clima e ao tipo de terra, cooperativismo e outros temas do seu interesse. Esclarecia e dava conselhos. Como era muito económico, algum dinheiro poupado aplicava-o na compra de obras recentes, porque não havia bibliotecas naquela área e raramente encontrava alguém que lhe emprestasse ou com ele permutasse livros.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Anos a fio, o Pe. João manteve estes bons hábitos. Nas reuniões em que participava, distinguia-se pela sabedoria e pela tolerância em relação a pontos de vista diferentes. Quase sempre convencia os demais pela justeza das suas opiniões, mas não deixava de reflectir acerca do que escutava. Escrevia também, e publicou algumas obras muito elogiadas por críticos e académicos. A fama daquele padre sábio alastrou como fogo no mato seco. Com certa frequência era visitado por intelectuais de Portugal e do estrangeiro. Representou o nosso país em fóruns internacionais.

    Foi envelhecendo e, quando faleceu, os paroquianos choraram-no e os herdeiros não tardaram em reclamar a herança. Ao entrarem na casa onde o tio vivera, tiveram a primeira decepção: apesar de limpa, não apresentava sinais de prosperidade, havia poucos móveis e sem valor. Viram livros, muitos livros, nos quartos, na sala, no local onde costumava receber os paroquianos. Eram estantes repletas de volumes, eram pilhas e pilhas de obras espalhadas pelo chão, com certeza à espera de serem devidamente acondicionadas.

    De imediato, puseram mãos à obra: revolveram a casa de alto a baixo, de divisão em divisão, viram em cima dos móveis, no interior das gavetas, debaixo do colchão; perscrutaram sinais de esconderijos nos soalhos, nos forros, no revestimento das paredes, sacudiram os livros, um a um, à espera que deles caíssem notas, provas de contas bancárias, cheques ou confissões de dívida.

    – Talvez tenha dito a alguém onde guardava o dinheiro. Devíamos perguntar às pessoas que o conheciam melhor. – sugeria um deles já meio desanimado.

    – Se tivesse guardado valores, fosse lá onde fosse, apareciam as provas. Não quero fazer figura de parvo diante desta gente – lembrava outro ainda mais descrente. – O velhote não tinha um tostão furado.

    Ao contrário de Midas que transformava em ouro tudo aquilo em que tocava, o bom abade transformara em livros todo o dinheiro que ganhou ao longo da vida. Assim pensaram os herdeiros, que de mitologia nada sabiam, e esta foi a segunda e maior decepção.

    Apesar de semi-analfabetos, nenhum quis prescindir do seu quinhão na herança. Livros? Pois que fossem livros. Trouxeram uma balança e pesaram todos os livros em lotes iguais. Sobrou, no entanto, um grosso volume. Alguém sugeriu que deitassem sortes para ver a qual deles caberia, mas houve quem não concordasse com receio de ficar a perder alguns gramas de papel impresso para outro mais afortunado.

    Ficaram, por momentos, suspensos, porém um mais decidido foi buscar a machadinha com que o tio cortava a lenha, calcularam as folhas que pertenceriam a cada um e…zás, zás, cortaram o calhamaço em tantos bocados quantos os herdeiros.

    Por: Nuno Afonso

     

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