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    Arquivo: Edição de 28-02-2007

    SECÇÃO: Arte Nona


    “Solo”, de Filipe Abranches

    Com data de Outubro de 2006, esta edição da Polvo (Colecção Polvo-Prontuário) reúne, num único livrinho, vários trabalhos de Filipe Abranches, dispersos e inéditos («por concursos, festivais e revistas»).

    Material a preto e branco, sem excepção, sob o domínio feito absoluto, da única cor – o preto – admitida na prancha.

    Nem por isso o livro escorrega para o monocórdico, com um Filipe Abranches camaleónico (de que o próprio autor tem plena consciência reflectida logo na Introdução: «Solo ou... Camaleão, outro título proposto. O termo camaleão, mesmo “amenizado”, justificaria uma diversidade gráfica, gestual, pois sim [...].

    Solo, porque a violoncelista nua de uma das histórias é solista numa orquestra. Mas igualmente por essas histórias serem produto de um trabalho solitário e de gosto pelo preto e branco, uma alternativa ao “grayscale” da realidade [...]»).

    O próprio autor, com as próprias palavras – e por isso melhor que ninguém – refere várias linhas de propostas técnicas e deixa a nu aquilo que é marcante nesta obra, a um tempo gráfica e poética, numa unidade tão raras vezes alcançada: «[...] Ao recolher material para esta edição afundei-me em memórias pessoais já perdidas, mas reencontradas no fio do desenho. Quando é que passei a usar mais negro em detrimento da linha clara? Como é que voltou o gosto pelo traço puro? Algo de incontornável: muito do material teve que ser “limpo” depois de digitalizado. É uma prática comum ao meio. Limpeza. O ideal é ser o próprio autor a fazê-la. Não sendo possível, então outra pessoa que desenhe ou ame o desenho em geral. Que tradutor não poeta se põe a traduzir poesia pura? O que distingue um traço pensado de um salpico de café? Mas eu lembro-me daquele café...».

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    Virtuoso produtor de imagens, autor de recursos fabulosos, camaleónico, sem qualquer dúvida, em Filipe Abranches veríamos pouco se nos detivéssemos nessas margens do talento que indubitavelmente tem.

    Abranches não cede nada à gratuidade e isso mesmo é facilmente visível mesmo neste seu livrinho de dispersos, ou até por isso, ajudando a compreender os universos que carrega.

    Licenciado em Cinema (Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa) a sua obra criativa tem, contudo, vindo a expressar-se sobretudo na Banda Desenhada e Ilustração, sendo contudo, concerteza, preciosa a sua formação cinematográfica, que visivelmente se espelha no dramatismo kafkiano de muitas das suas estórias, ao mesmo tempo inquinadas de uma surda, venenosa, furiosa poesia.

    Em “Solo”, Filipe Abranches apresenta-nos 16 pequenas obras (a maioria delas à volta de cinco pranchas, sendo a mais curta “Para Muñoz” – só uma, mas muito esclarecedora quanto ao facto de fazer alguma luz sobre uma das influências que mais terá marcado o autor, supomos – e a mais longa, de longe, “Passeio no Jardim Mágico” – com nove.

    Curiosamente, e pegando já nessa peça, em “Para Muñoz”, Abranches faz alarde do seu mimetismo, concebendo uma homenagem aos argentinos José Muñoz e Carlos Sampayo em que se expressa com um grafismo decalcado do de Muñoz.

    Em “Marilyn”, a peça com que se inicia esta antologia, está bem patente já a versatilidade gráfica de Filipe Abranches, com uma primeira prancha em que o negro que aí impera a meias com o branco surge espatulado e pincelado, para depois, nas pranchas seguintes dar lugar a manchas de contornos bem mais definidos e precisos, ainda no mesmo equilíbrio comático, mas com a estilização das longilíneas figuras humanas, a que se junta uma letragem subtil, fima e angulosa.

    “Fados e Facas”, com um enredo muito mais óbvio, entre o erótico e o policial negro, faz recordar o Genet de ”Querelle”. Aqui, a presença da cor preta é realizada com o uso do pincel que vai sugerindo as formas.

    Segue-se “Pássaros”, uma peça em cinco pranchas sem palavras, realizada a traço fino, salvo uma ou outra mancha, com uma narrativa muito interessante e, mais uma vez, de contornos “negros”.

    Em “Cláudia”, surge com uma técnica que suporta os contornos grossos das personagens, como grossas parecem elas ter ficado após a ingestão de uns copos entre paixões e suores agora frios pelo fim do mundo...

    “Janelas” é uma espécie de montra, sem história.

    Já “O Inquilino” faz, de certo modo lembrar, pela técnica e as personagens, o universo de “Pássaros”, mas juntando agora uma pitada mais de nonsense.

    SÁTIRAS DE

    SANTOS E

    DE HERÓIS

    “Santa Adorata”, que sugere o uso do crayon ou de técnica semelhante, conta a história de uma suposta “santa”, recorrendo a generosos trechos do texto de Apollinaire – conta o autor.

    E seguem-se “Bitoque”, nova incursão pelo surreal, “Solo”, a tal história que mete a violoncelista nua, “Feras”, na linha do horror, sempre recorrendo a técnicas diversas, ora imperando a linha ora o pincel.

    A sátira da História Portuguesa vem depois com “...À Vontade”, uma ácida referência à «gloriosa» participação portuguesa na I Guerra Mundial.

    “Rodas de Morte” é uma belíssima ilustração de um trecho do “D. Quixote”.

    O livrinho termina com, primeiro, “Passeio no Jardim Mágico”, outra história em que os balões não têm senão um papel muito a cessório e limitado e em que o enredo vai escorrendo com toda a leveza. E depois, histórias da cidade, como em “A Morte do Palhaço” ou a mais lisboeta de todas, na assumpção clara dos ambientes, que é a última peça, “La Minute”.

    As obras presentes datam de um período que vai de 1988 até 2005, sendo a mais recente a edição realizada para o quarto centenário de D. Quixote pela Junta de Castillla-La Mancha e as edições Sinsentido.

    Por: LC

     

     

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