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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-01-2007

    SECÇÃO: Arte Nona


    A feira de políticos, o tatuador, o deserto, a baleia e outras estórias

    William Henry Fox-Talbot, um dos pioneiros da fotografia, foi o autor, por volta de 1840, de um método que permitia aplicar a prata sensível ao papel, a calcotipia ou talbotipia (também chamado de umbrografia).

    Da mesma forma, a obra de José Carlos Fernandes e Luís Henriques, editada pela Devir em Outubro de 2006, e que constitui o primeiro tomo de uma série intitulada Black Box Stories, parece ter essa mesma pretensão, de fixar no papel reflexos iluminados de matéria sensível, à maneira dessas descobertas pioneiras.

    Não é também por acaso que a série se chama Black Box Stories, mais uma vez referenciando a fotografia e remetendo para uma técnica de registo (e arquivo) que é, antes de mais, testemunhal e re(organizadora) de ideias, memórias, sonhos, sensações, vivências...

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    No "Tratado de Umbrografia" a primeira constatação óbvia é a do mimetismo camaleónico de Luís Henriques. Pois se é verdade que o carácter testemunhal, quer monográfico, quer de reportagem atravessa a obra de lado a lado e o cunho desse desvendamento das estórias de José Carlos Fernandes está lá sempre presente, também é verdade que Luís Henriques vai adaptando a forma e a cor a cada um dos vários (manu)scritos encontrados dentro da caixinha preta (evidentemente, mais uma referência à importância, na obra, da ambiência de registo distanciado e posterior.

    Assim, as técnicas que o quadrinista vai empregando vão-se sucedendo e diferindo, ora sob o domínio do traço, ora sob o da mancha. Se em "Tratado de Umbrografia", que dá o título a este primeiro volume das Black Box Stories e em "Elegia Americana", há uma contenção da cor, com cambiantes pouco violentos, o uso de monocromatismos, de grandes pinceladas do preto (ou melhor, escuro) e do branco, em "A Substância de que São Feitos os Sonhos", as grandes manchas de cor desaparecem e resta o traço, num absoluto domínio do desenho sobre a pintura. Já não há jogos de sombra (impostos pelos flashbacks das estórias anteriores), tramados, crayons, aguarelas, ficando apenas a leveza etérea do traço que, tal como o sonho, fica assim a pairar....

    A desbunda impressionista e marcadamente provocatória na profusão e contraste da cor aparece em "A Feira dos Políticos Manuseados", onde também avultam as sobreposições, as leituras em dois (ou mais sentidos), e se afirma o reino do múltiplo (ou ao menos do dual).

    Em "Zuma, o Tatuador" volta o traço, usando-se a cor vermelha como pano de fundo e permitindo, por isso, o domínio intenso mas não exclusivo do traço preto. Finalmente, em "O Avanço do Deserto", Luís Henriques volta a aproximar-se da técnica usada em "A Substância de que São Feitos os Sonhos", se bem que aqui efeitos de arrastamento propiciados pelos traços paralelos permitam uma melhor percepção do efémero levado e trazido pelo vento.

    Estamos diante de um autor de recursos notáveis e José Carlos Fernandes, de quem evidentemente tem que se dizer o mesmo quanto à inventiva posta no trabalho de argumentista, encontrou o par perfeito para as suas estórias.

    Em "Tratado de Umbrografia" o tema é a sombra, aprendendo nós no Tratado, algumas coisas que nem sonhávamos, como o facto (comprovado por numerosos académicos, aliás bem referenciados na obra), de haver pessoas que não projectam sombra (ou por incapacidade ou por malas artes), e de o mundo ser hoje governado pela Seita da Linha da Sombra que desde tempos imemoriais existe e se envolveu até nas "ferozes lutas pelo poder no Império Persa.

    "Elegia Americana" é a estória de um pintor (quase diríamos alma gémea de outro calcorreador de caminhos encontrado no seu – de J. C . Fernandes – "On the Road"), que encontra a revelação... e afirma o seu êxito.

    Em "A Substância de que São Feitos os Sonhos", a atmosfera captada lembra a da Alice de Lewis Carroll, ou a Dorothy de "O Feiticeiro de Oz", atmosfera que , aliás, Luís Henriques bem captou. Depois somam-se Moby Dick e o Jonas bíblico e já temos que chegue. Leiam, leiam, mas é...

    BOA IDEIA, A DA FEIRA

    DOS POLÍTICOS MAUSEADOS

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    De "A Feira dos Políticos Manuseados" não há que dizer. Fiquemos com José Carlos Fernandes: "Uma excelente ideia, sem dúvida, comentei enquanto passeava por entre o bulício da multidão e os reclamos dos vendedores/ Tantos e tão robustos talentos, que acorrem ao chamamento do dever e do serviço da coisa pública e que, após meteórica passagem por um ministério mergulham no olvido eterno/ Um flagrante desperdício de capital humano, um luxo a que nenhuma nação se pode dar!/ Não me refiro, é claro, aos políticos de tarimba, que sobrevivem a todos os desastres eleitorais, escândalos financeiros e remodelações governamentais/ e regressam sempre, um pouco como aqueles arquivilões da banda desenhada que são electrocutados, triturados ou soterrados no final de um episódio/ mas voltam no episódio seguinte, mais viçosos e malvados do que nunca/ enfim, verdadeiros Proteus, capazes de assegurar qualquer cargo, de Secretário de Estado dos Coretos a Ministro da Inimputabilidade, tão à-vontade a discutir o programa de incentivos à indústria de pestanas postiças como a progressão na carreira dos frenologistas/ sempre disponíveis para servir a Pátria, sob a bandeira do...".

    Em "Zuma, o Tatuador", arrepiamo-nos com o poder de Tezcatlipoca, que domina o mundo através da tatuagem - é, de todas as estórias do livro, a que mais se aproxima do registo do terror. Por fim, "O Avanço do Deserto", contando a estória do imparável, que não conseguimos deter de forma alguma, fazendo-nos ainda mais pequeninos...

    Por: LC

     

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