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    Arquivo: Edição de 30-01-2007

    SECÇÃO: Destaque


    Albino Aroso - o pai do Planeamento Familiar

    No debate que atravessa transversalmente a sociedade portuguesa a propósito do alargamento das condições permitidas da interrupção voluntária da gravidez, que passará ou não a contemplar também a possibilidade de, até às 10 semanas, aquela poder ser efectuada a pedido da mulher, defensores do SIM e do NÃO têm vindo a esgrimir argumentos em favor das suas posições, mas em geral, numa coisa parece haver unanimidade, levando em linha de conta as intervenções que, neste período de debate, têm produzido: a defesa das condições de saúde da mulher na maternidade, a educação sexual e a defesa de políticas de Planeamento Familiar. Ora, se há alguém que possa ser unanimemente apontado como personalidade empenhada, e de há longos longos anos, nessa batalha, esse será, sem dúvida, o médico e professor Albino Aroso.

    Fotos URSULA ZANGGER
    Fotos URSULA ZANGGER
    Albino Aroso Ramos, “o pai do Planeamento Familiar em Portugal”, como por muitos é conhecido, é o terceiro de uma família de seis irmãos que perderam o pai de tenra idade, e nunca se esquece de enaltecer a figura da mãe, “uma mulher evoluída” e que o ensinou a respeitar e compreender bem a vida das mulheres, no país retrógrado e padrasto que era para elas o Portugal de Salazar, como nos fez questão de a lembrar.

    Professor associado jubilado de Ginecologia no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, licenciou-se em Medicina na Universidade do Porto aos 24 anos, tendo ingressado no Hospital de Santo António, onde veio, mais tarde, a desempenhar o cargo de presidente do Conselho de Administração.

    Em 1967 participou na fundação da Associação para o Planeamento da Família, e dois anos depois, pela primeira vez em Portugal, abre a primeira consulta pública e gratuita de Planeamento Familiar.

    Nascido em Vila do Conde há 84 anos, apesar das dificuldades de audição («estou surdo como uma porta» – anuncia com desarmante e pública franqueza no debate a que assistimos, antes de conversarmos com ele), revela grande vitalidade, clareza de ideias e determinação em defender o que acha justo perante qualquer plateia, mesmo a mais antagónica, como aquela cujo comportamento para com ele era provavelmente a de quem não sabe o quanto lhe deve a saúde e a situação das mulheres em Portugal.

    Secretário de Estado da Administração de Saúde no Governo de Cavaco Silva, ele é um dos grandes responsáveis pela melhoria das práticas de saúde na área materno-infantil em Portugal, o que lhe valeu, ainda há dois anos, a distinção da Associação Médica Mundial (uma entidade que agrupa associações médicas de todo o mundo) que o incluiu, apesar da sua provecta idade – sendo o único médico português a merecer tamanha honra – no grupo dos “médicos mais dedicados do Mundo”, um conjunto de apenas 65 personalidades mundiais de grande destaque.

    A Associação Médica Mundial destacou aí, entre outras coisas, o seu labor precisamente na inversão das taxas de mortalidade materno-infantil, tendo a legislação que produziu enquanto secretário de Estado em muito contribuído para que Portugal passasse de uma das mais altas taxas de mortalidade perinatal na Europa, para uma das mais baixas no mundo.

    Recorde-se que, em 1987, sob a sua inspiração, foi criada a Comissão de Saúde Materno-Infantil em Portugal e que, dois anos depois, Albino Aroso acompanhou de perto os trabalhos daquela comissão, então sob o comando da ministra da Saúde Leonor Beleza.

    Também não foi por acaso que a atribuição do primeiro Prémio Nacional de Saúde, criado pelo actual ministro Correia de Campos, mais recentemente o distinguiu.

    «O “exemplo de vida” e a “dedicação à causa pública, dando o melhor saber e entrega às políticas de saúde”» foram os motivos invocados pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) para a atribuição do Prémio a Albino Aroso (o júri do Prémio Nacional de Saúde foi constituído por personalidades tão ilustres como o director do Instituto de Bioética da Universidade Católica, Walter Osswald, que presidiu, pelos bastonários das Ordens dos Médicos, Enfermeiros e Farmacêuticos e ainda pelo director do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Jorge Torgal).

    Muito afável e disponível, o ilustre clínico aceitou de imediato a entrevista para “A Voz de Ermesinde”, mesmo após o prolongado debate de cerca de quatro horas em que tinha acabado de participar.

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    “A Voz de Ermesinde” (AVE) – Como recorda os primeiros anos da sua acção em relação ao Planeamento Familiar?

    Albino Aroso (AA) – Quando a minha mãe ficou viúva, não tinha eu ainda sequer dez anos, ela, que era uma mulher extraordinária, mostrou-me a diferença de tratamento que havia entre homens e mulheres. A situação era muito desigual.

    Em Dezembro, faz 60 anos, passei a minha primeira noite na Maternidade Júlio Diniz e chegou uma parturiente que estava a perder muito sangue.

    «Quando foi a última menstruação?», perguntava a enfermeira, mas ela não sabia responder.

    «Ela que puxe, que puxe!». E passado um bom bocado: «Já nasceu?». «Já morreu!».

    Pesado o nado-morto, tinha 525 g. O médico responsável do serviço mandou inscrever 485 g e deu ordens: «Podes deitar fora!».

    Mas que é isto? Era assim o respeito pelo ser humano?

    Era um mundo muito diferente do de hoje [recorda com indignação aqueles momentos da sua iniciação médica].

    Na altura “não havia” abortos. Salazar não permitia.

    As mulheres que abortavam eram tratadas de forma desumana, a única coisa que lhes faziam era pôr-lhes uns drenos de mouchotte. Eram julgadas e condenadas.

    Quando fiquei director do Arsenal, as minhas ordens eram de que todas as mulheres fossem tratadas o mais humanamente possível.

    Por volta dos anos 60, em dada altura, em conversa com um representante de um laboratório, ele falou-me de um pequeno problema que tinha tido com um medicamento que era contraceptivo. Interessou-me logo muito aquele assunto. Em 1967 abriu a primeira consulta de Planeamento Familiar. O aborto continuava a não existir e, apesar de não serem permitidos quaisquer tratamentos, podíamos sempre contornar a dificuldade, já que incluíamos todos os casos no tratamento das chamadas “irregularidades menstruais”.

    AVE – Qual foi o acolhimento dado às primeiras políticas de Planeamento?

    AA – Com a abertura dos Centros Materno-Infantis e o Planeamento Familiar, ao princípio tivemos grandes dificuldades, porque em muitos sítios os homens opunham-se, com medo de que as mulheres pudessem ser infiéis. Mas a pouco e pouco, a contracepção começou a atingir toda a gente.

    Em 1976, a Portaria que instituía formalmente o Planeamento Familiar mereceu até um comentário do Prof. Arnaldo Sampaio (pai do anterior Presidente da República), que, muito prudente, me disse: «Ó Albino Aroso, veja lá no que se mete, olhe que houve o 25 de Abril, mas ainda não houve uma revolução cultural».

    Na discussão a que assisto hoje em dia a propósito da despenalização admiro-me de ver a defender tanto o Planeamento Familiar, pessoas (defensoras do NÃO) que sempre o combateram.

    O Planeamento Familiar fez muito pela diminuição dos casos de aborto em Portugal. No Hospital de Santo António chegavam a receber-se 15 mulheres por dia a necessitar de cuidados médicos de complicações resultantes do aborto, hoje há dias em que não há nenhuma.

    A evolução histórica foi muita. Apesar de tudo, hoje não me admiraria se o NÃO ganhasse, dado a nossa sociedade, nesta matéria, estar ainda com um grande atraso em relação ao resto da Europa. Embora já haja também muita gente a votar SIM.

    AVE – Não há vida humana às 10 semanas?

    AA – Fala-se muito – os partidários do NÃO – da vida humana, querendo fazer crer que um feto de poucas semanas já é vida humana. Mas toda a gente sabe que não é assim.

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    Quando uma mulher, como resultado de um aborto espontâneo, perde o feto, que é expulso do seu corpo, por exemplo, no banho, o que é que faz? Toda a gente sabe aonde ele vai parar. E a mulher que medidas toma, chama a polícia? Chama o juiz? Chama o padre? Toda a gente sabe que não. Qualquer vizinha lhe diz: «– Ó Maria, deixa lá, para o ano vais ter um bebé!». E não se faz nenhum funeral nem se celebra missa.

    E quando há um acidente de viação fatal, em que uma mulher grávida esteve envolvida? Fala-se na morte de uma pessoa, não de duas.

    A vida é um contínuo, não pode dizer-se exactamente onde ela começa. O óvulo não é uma massa inerte, já é vida, o espermatozóide já é vida. Não pode é dizer-se que já é vida humana. A diferenciação das células ainda não o permite. O sistema nervoso central continua ausente e, por isso, qualquer sentimento, consciência, ou autonomia.

    Se fosse de outra maneira já se teria legalizado a protecção jurídica de embriões abaixo das dez semanas.

    Os embriões guardados nos frigoríficos dos laboratórios são seres humanos ou um conjunto de células?

    [Despede-se dos presentes, fazendo ainda um comentário sobre o debate em que participou, com a vivacidade de espírito de um jovem, e com uma energia que faria inveja a muitos de metade da idade dele. Esperam-no ainda muitos debates e vê-se que, como sempre que precisaram dele as suas grávidas e mulheres aflitas, ele continua, absolutamente disponível].

    Por: LC

     

     

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