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    Arquivo: Edição de 15-01-2007

    SECÇÃO: Arte Nona


    Fato-de-macaco

    Razão nenhuma, minimamente aceitável, justifica a escolha que hoje fazemos para os leitores de “A Voz de Ermesinde”.

    Diremos antes que reunimos um conjunto de pretextos ou alibis para abordarmos uns quantos assuntos de passagem e achámos que este livrinho (tem apenas vinte páginas, num formato de comic book) era o ideal.

    Estória editada faz já seis anos, “Fato-de-macaco”, de Rui Gamito, nem sequer seria uma obra de excepção, merecedora de mais do que um olhar de soslaio, dada a natureza simples do guião, uma peça de humor (e de vago fantástico ou ficção científica), sem pretensões por aí além, aparentemente...

    Vamos pois às razões, espúrias, quiçá arbitrárias.

    A começar, a edição, datada de Novembro de 2000, é da Bedeteca de Lisboa e, sendo esta uma valência da Divisão de Bibliotecas e Documentação do Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, não deixa de nos vir aqui atormentar com a questão da relação a haver entre os poderes públicos, nomeadamente no plano autárquico, e o apoio à divulgação e à produção da cultura.

    Porque, apesar de obra ligeira, fique claro, não deixamos de considerar “Fato-de-macaco” um produto cultural, agrade--nos ou não mais ou menos. E vendo melhor...

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    Razão nenhuma, dizíamos, minimamente aceitável justificaria a escolha de “Fato-de--macaco”, mas o facto é que as escolhas nem sempre serão inteiramente racionais, sendo muitas vezes inquinadas, temperadas ou refinadas (conforme o ponto de vista) pelo sensitivo. E falando nós de uma obra artística (a nossa ênfase e repetição neste aspecto é propositada), mais sentido faz usar destas razões alheias à razão.

    Uma segunda destas prende-se ainda com o facto de este livrinho ser uma edição da Bedeteca, que tendo como responsável João Paulo Cotrim, merece na pessoa deste e ainda que a despropósito, mais uma referência. Isto só para lembrar que o seu “Salazar” (com Miguel Rocha) foi uma das obras de referência da Banda Desenhada portuguesa de 2006. E não poderemos dizer «a obra de referência», porque factores tão prosaicos como escassez de tempo e multiplicidade de interesses nos impediram de ler – fosse esta a maior vergonha... – outras obras consideradas fundamentais (por Carlos Pessoa, no “Público”, por exemplo), como “Tratado de Umbrografia”, de Luís Henriques/José Carlos Fernandes. Não se vão enganar os leitores, aqui, José Carlos Fernandes é “só” o cenarista.

    Uma palavra quanto ao “Tratado...” ficará para uma próxima oportunidade.

    Depois razões completamente avulsas e idiotas, como por exemplo o facto de, a braços com uma espreitadela a alguns problemas de xadrez, que cultivámos com a mesma irrresponsabilidade ou desfaçatez despretensiosa (a segunda hipótese é piedosa e também de nossa autoria), nos ter parecido bem agarrar aqui no nome de um autor que nos recorda os maravilhosos sacrifícios que podemos propor para daí sacar vantagens insuspeitas no jogo, e que dão pelo nome de gambito.

    Amigos meus diriam que, mais do que o xadrez, o apelido do Rui, autor do “Fato-de-macaco” faria antes recordar o ciclismo.

    Poderia sim...

    “Fato-de-macaco” é uma obra inteiramente a preto e branco (dois tons) e isso lá voltaria a desequilibrar a favor do xadrez.

    Depois, simplesmente o título, “Fato-de--macaco”, merece-nos a atenção, servindo--nos quase como uma homenagem subliminar (enfim, bem pouco subliminar) àqueles que pouco mais são do que joguetes das decisões de responsáveis guiados pela frieza das razões de economia, mas disso melhor que nós haverá quem nos fale, mesmo neste número de “A Voz de Ermesinde”.

    O TEMA

    DA CONDIÇÃO

    FEMININA

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    E depois, a juntar a todos estes arbitrários pretextos um outro que não o será tanto, porque esse é, de facto, no meio do humor aparentemente inócuo de “Fato-de-macaco” um tema bem presente e pertinente, o da condição feminina.

    Por isso, oportuna reflexão sobre o lugar da mulher e os seus dilemas, em época em que começam a agitar-se as discussões em volta do problema da criminalização ou não da interrupção voluntária da gravidez.

    Uma perseguição policial, de natureza criminosa ou qualquer coisa assim – isso não fica claro na estória – faz com que o protagonista (e raramente se vê alguém ser assim tão pouco protagonista) se vá abrigar ou esconder numa casa que é, afinal, um colégio interno feminino.

    Quem ali se aloja – ver-se-á depois – não são as supostas alunas internas, mas sim andróides destas, que permitem às verdadeiras passar despercebidas quando se internam na noite para irem em conjunto, curtir a música e os amores.

    O objecto dessas surtidas nocturnas, decalcadas do universo masculino, é o dos stipshows, drogas, álcool e discosound..., mas num mundo que democratiza os consumos e até todas as mais inconfessáveis perversões desde que estas propiciem mais-valia aos investimentos, tudo isso é já terreno do mais vulgar unisexo.

    Uma dupla moral exige, assim, uma “familiar” defesa de certos valores, tradicionalmente considerados apanágio da mulher, sendo aos homens consentido muito mais...

    Mas, fora desse reduto, os troféus exibidos já há muito são os mesmos.

    A questão do papel que desempenham (e porque não?, os géneros, está aliás bem expressa na réplica de uma locatária: «Como vocês sabem, há cada vez mais mulheres com grau académico, o nosso conhecimento científico permite-nos...»).

    INÚMERAS

    PISCADELAS

    DE OLHO

    Que a estória é, claramente, uma simples paródia, ninguém o duvida, mas um olhar mais atento irá começar a descobrir no meio do absoluto dislate, inúmeras piscadelas de olho, que surgem aqui e ali remetendo-nos para os universos culturais do cinema, da televisão e da própria Banda Desenhada.

    No paroxismo da paródia, aos andróides vão-se juntando os zombies e, por fim, os extra-terrestres.

    Do ponto de vista gráfico, a obra tem uma marcação muito dinâmica, gostando nós particularmente das pranchas referentes aos exteriores nocturnos do início do livro.

    Manchas de negro generoso, enquadramentos muito elásticos, criando pontes entre os picados e os close ups, um equilíbrio entre a luz e a sombra, tudo isso retém a atenção do leitor e o prepara para o burlesco que o espera a seguir, atacando sem sobreaviso.

    Por: LC

     

     

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