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    Arquivo: Edição de 30-12-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Largo d''à Bica

    Até ao princípio do século vinte deve ter existido ali um bebedouro para os animais que passavam, quer em trabalho, quer na ida e na vinda dos lameiros. O lugar era estratégico, porque ficava na confluência de vários caminhos da povoação. Talvez por isso, foi construído, naquele espaço, em 1904, o primeiro fontanário, abastecido pela água duma mina em cortinha destinada ao cultivo de renovo, a menos de cinquenta metros para norte. As habitações próximas ficavam assim em clara vantagem sobre as demais que continuaram, por muitas décadas, a servir-se das denominadas “fontes de mergulho”: pequenos poços que retinham a água de nascentes e onde os moradores mergulhavam cântaros e outros recipientes para os encherem do precioso líquido necessário ao uso doméstico. Embora pobre, a aldeia tinha abundância desse elemento indispensável à vida humana.

    Ninguém sabe quem solicitou à Câmara a construção do monumento em granito, rocha estranha à região, nem parece haver interesse em conhecê-lo. É pena, porque foi talvez o primeiro traço de progresso no equipamento comunitário. Na sua simplicidade, tornou-se o ponto fulcral dum logradouro cuja beleza e frescura encantavam moradores e visitantes. O terreno, bastante declivoso, foi nivelado no espaço em que o erigiram. Por detrás levantaram um muro de pedra, com quase dois metros de altura que suportava o desnível criado e protegia a obra de alguma enxurrada mais violenta. Por cima do muro e em boa parte da sua extensão colocaram lajes, o que facilitava a sua utilização como assento ou como simples apoio.

    À entrada do largo, o caminho, que provinha do fundo do povoado, bifurcava-se: à direita uma dessas vias subia em direcção à montanha; outra, a sul, levava às terras baixas e mais férteis onde se cultivam as hortas, e os pastos são mais verdes e abundantes. Esta era limitada por um murete especialmente destinado ao descanso em horas vazias ou ao namoro de rapazes, por breve tempo inactivos, com as moçoilas que esfregavam e batiam as roupas da família no lavadouro para onde se escoavam as águas do tanque e donde se erguiam vozes fresquíssimas e bem timbradas.

    Quase no extremo dos muros havia duas amoreiras que, nas tardes calmosas do Estio, refrescavam os aldeões que vinham acolher-se à sua protecção e ali falavam do bom ou mau ano que viviam, das suas esperanças em relação a colheitas, ouviam as chalaças dos mais brincalhões, contavam histórias que traziam dos contactos com gente das aldeias vizinhas ou que tinham escutado nas tabernas da cidade em dias de feira quando os alvos não eram os próprios conterrâneos. Também nesses muros, ao anoitecer, repousavam os segadores enquanto um tocador de concertina, rabeca ou viola não lhes despertava o ânimo para a dança do Malhão ou qualquer outra ao gosto popular. E ei-los a bailar tão lestos e animados como se nada lhes pesassem as longas horas de árduo trabalho debaixo de um sol inclemente, o corpo mordido pela moinha que se desprendia das espigas e que o suor colava à pele.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Na Igreja mesmo ao lado, terminada a Missa de domingo, a autoridade local avisava:

    – Espere o povo no auditório!

    O “povo” eram os homens, que as mulheres iam de imediato para casa tratar do almoço ou arrumar o que, na pressa, tinham deixado de qualquer jeito, e os garotos entretinham-se em brincadeiras até que pai ou avô lhes desse a ordem do costume:

    – Vai lá mas é ajudar a tua mãe no que for preciso!

    Palavras curtas, mas prontamente obedecidas, porque as mãos dos adultos eram pesadas e as atitudes feriam mais do que as pancadas. Na verdade, em casa havia muito que dar a fazer aos mais pequenos: cortar lenha para a lareira onde se preparavam as refeições, ir à fonte encher os cântaros, comprar miudezas imprescindíveis aos cozinhados que, sendo domingo, teriam maior apuro.

    No auditório procedia-se à arrematação das esmolas, que na véspera eram recolhidas, para as Almas do Purgatório e santos de maior crença: chouriças ou salpicão, meia dúzia de ovos, cestinha de nozes ou de bolinhos “económicos”, um frango ou láparo, de longe em longe um cordeiro em reconhecimento de promessa atendida. Depois, a autoridade expunha questões que exigiam pronta resposta, anunciava a partilha das águas proporcionalmente às terras que cada família tinha para regar, convocava “conselhos” para arranjar caminhos, poços, agueiras de regadio, moinhos e outros equipamentos colectivos, dava conta de diligências feitas na Câmara Municipal acerca de projectos que eram da sua competência. Discutia--se e, quase sempre, as propostas eram aprovadas. Então, o ajuntamento desfazia--se, cada qual ia procurar o almoço que presumia pronto e à sua espera.

    Também a escola, antiga casa paroquial, dava para o largo. À hora do intervalo ou da saída, dezenas de crianças inundavam aquele espaço em alvoroço e doidas correrias. Logo que o tempo aquecia, lá estava o tio Papim a fazer ligas de palha serôdia para chapéus à sombra da amoreira de baixo, que não dava fruto, ao contrário da sua irmã de cima, que se cobria de amoras negras e dulcíssimas, disputadas pela miudagem que não hesitava em fazê-las cair à pedrada. O homem, há muito paralítico dos membros inferiores, deslocava-se da sua casa, a poucos metros de distância, apoiado em bengalas de fabrico caseiro, que mantinha a seu lado e com as quais ameaçava os pequenos vândalos pouco impressionados com as suas reprimendas e ameaças. Às vezes, porém, levantava-se mesmo e dirigia--se aos diabretes que se escapuliam entre risotas e motejos:

    – Ah, grandes cães, andai cá que eu vos dou as amoras!

    Mas um dia o "progresso" invadiu o largo e expulsou de vez a poesia que dele emanava. Só restou o chafariz, porque as máquinas terraplenaram todo o espaço em torno, arrancaram as amoreiras, derrubaram os muros. Vieram homens estranhos a vestir os caminhos com a sua arte, seguindo traços de engenheiros de muito saber e modernas concepções urbanizantes. E o antigo Largo d'à Bica já só mora na nossa lembrança.

    Por: Nuno Afonso

     

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