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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 20-12-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    A luz de Travaços

    «Lúcifer, o que transporta a luz, príncipe da corte celeste, colocado acima de Anjos, Arcanjos, Tronos, Dominações, e Potestades que, por desmedido orgulho e vã soberba se revoltou contra o Senhor, foi por Ele precipitado das alturas e, desde então, tornou-se a suprema identificação do Mal, o soberano das trevas infernais. A luz de que, por vezes, se reveste não passa de mera ilusão para tentar as almas». Estas e outras frases de grande efeito, capazes de impressionar as almas simples dos aldeãos, foram proferidas pelo pregador na festa de S. Mamede, o Santo Padroeiro da aldeia, num belo domingo de Junho cheio de sol e de promessas o que, desde logo, lhes retirou forte dose de emoção. Talvez que, se fosse naqueles dias de Inverno, em que os fiéis enregelam no interior da velha igreja de pedra enquanto lá fora o vento uiva e a chuva tomba a cântaros de um céu carrancudo, a receptividade fosse bastante maior. Num tempo assim, natural seria que tivessem a atenção mais voltada para os lameiros que esperam gadanha e para as searas que já enlourecem, prenhes de grão, oscilando ao sabor da brisa ligeira da esplendorosa manhã.

    O tio Zeca, um dos poucos que tinham a quarta classe, nessa época coisa quase tão rara como amoras em Maio, deixou-se impressionar pelas palavras que lhe chegavam do púlpito, sobretudo por via da tal luz e da queda dessa figura que era anjo e passou a ser demónio. Matutou, relacionou o fenómeno com corpos celestes que vagueiam pelo espaço e tombam sabe-se lá onde, voltou a matutar e a relacionar e nada mais ouviu da pregação, porque a sua mente tinha deixado a esfera exclusiva da religiosidade para se fixar num assunto tão profano como o fenómeno da luz misteriosa que sucessivas gerações vinham presenciando todas as noites num sítio ermo defronte da aldeia a poucos quilómetros dali num local a que chamavam Travaços. Via-se desde o anoitecer e pela noite dentro, sempre no mesmo lugar, totalmente imóvel a desafiar a lógica e a curiosidade das gentes. Não correspondia a nada do que eles conheciam, da sua vivência normal: lavrador que tomasse conta da água durante a noite e fosse portador de algo como um "petromax", fogo-fátuo em sítio onde existe matéria em decomposição, presença de algum mineral desconhecido…Mas essa de permanecer ali em continuidade e de não falhar uma única noite, anos a fio, não se coadunava com nenhuma destas hipóteses.

    O tio Zeca falou no assunto a algumas das pessoas que julgou capazes de o compreenderem, mas ninguém pareceu interessado em fazer luz sobre a tal luz. Respondiam que essas coisas, o melhor era ignorá-las, porque não afectavam a vida de ninguém, nada se ganhava em esclarecê-las. Era notória a inquietação que se lia no rosto das pessoas sempre que o assunto vinha a capítulo, em parte explicável pelo natural medo do desconhecido mas, sobretudo, pela lembrança dos irmãos d'ó Regueiro que ousaram decifrar o mistério com as mais graves consequências:

    – Olha, pá, não te metas nisso – aconselhou o tio Prudêncio, traduzindo o sentir geral. – O Álvaro e o Zé Bernardino nunca mais quiseram falar do que viram e, pouco tempo depois, morreram em plena mocidade, assim, sem se saber porquê! Andavam tristes, começaram a definhar, a definhar até que se foram. É o que te digo, homem, bulir com essas coisas é muito perigoso.

    Outro teria acatado a voz da experiência, mas o tio Zeca era teimoso e, num dia em que foi à cidade, encontrou-se com o Pintche, guarda-republicano natural da aldeia, a quem deu conta das suas inquietações. O amigo tinha muitos e bons conhecimentos e prometeu-lhe que falaria com alguém capaz de o ajudar. Através deles chegou ao Dr. Quitério de Campos, professor de Ciências Físico-Químicas no Liceu, que viu ali uma oportunidade para se tornar célebre. Uma comunicação à Academia das Ciências de Lisboa poderia granjear-lhe prestígio e mais altos voos. Aceitou deslocar-se à povoação e observar de perto o estranho fenómeno que lhe relataram. Muniu-se de um telescópio e de tudo o que pudesse ajudá-lo na investigação ou servisse para registar os seus cálculos, gráficos e anotações, embalou tudo com delicadeza em caixas e, no dia combinado, pô-los em cima do cavalo que lhe disponibilizaram, montou e seguiu o tio Zeca rumo à aldeia. Nessa mesma tarde e noite fez as primeiras observações e calculou o lugar onde a luz aparecia.

    Agora seria indispensável a pesquisa de campo. No dia seguinte, sempre na companhia do homem que ali o trouxera, demandou a área de antemão assinalada. Infelizmente e mau grado o esforço que fizeram para identificar o ponto, não lograram encontrar a luz num espaço bastante mais amplo do que os cálculos indicavam.

    No seu posto de observação continuou os estudos por alguns dias. Nas raras ocasiões em que circulava pela aldeia notou que as pessoas o cumprimentavam com respeito mas também com um misto de compaixão, de receio e de aborrecimento, o que lhe causava certo desconforto. Mas não era homem para desistir à primeira. Quando entendeu que tinha esgotado os seus estudos, marcou nova expedição ao local e ainda uma vez nada conseguiu. Em conversa com o tio Zeca, admitiu o fracasso:

    – Desculpe, prezado amigo, mas, de momento e levando em conta as limitações do material de que disponho, não posso levar por diante a tarefa que me propuseram e que eu gostosamente aceitei. Lamento muito desapontá-lo, mas amanhã regresso ao meu trabalho no Liceu. Prometo--lhe que escreverei a um amigo, catedrático na Universidade de Coimbra, e, consoante a resposta, decidiremos se vale ou não a pena prosseguir com a investigação.

    O tio Zeca compreendeu a mensagem mais pelo embaraço do Dr. Quitério de Campos do que pelo seu discurso professoral e arrevesado. Agradeceu o favor que lhe tinha feito, ofereceu a sua casa e os seus préstimos e reconduziu-o a casa. Ainda esperou uma mensagem durante os meses seguintes mas acabou por esquecer o sonho na rotina da sua árdua vida de lavrador. E a luz de Travaços continuou a ser um enigma por decifrar.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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