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    Arquivo: Edição de 20-12-2006

    SECÇÃO: Destaque


    Os saberes básicos no contexto da sociedade do conhecimento

    “A Voz de Ermesinde” prossegue, neste número, a publicação de contribuições para o Debate Nacional sobre Educação, estando aberta ao envio por parte dos leitores, de reflexões que se enquadrem nesta temática. Desta vez publicamos o texto de Sérgio Machado Santos, reitor honorário da Universidade do Minho – “Os Saberes Básicos no Contexto da Sociedade do Conhecimento”.

    Procurando corresponder ao desafio de dar um contributo para o Debate Nacional sobre Educação, que está a ser conduzido no âmbito do CNE, trago aqui uma breve reflexão sobre os saberes básicos hoje em dia indispensáveis para o exercício de uma cidadania activa.

    A democratização do sistema educativo, com o alargamento e melhor implementação da escolaridade obrigatória e a criação de igualdade de oportunidades no acesso ao ensino secundário e ao ensino superior, veio introduzir profundas transformações em todo o sistema educativo, colocando nomeadamente em questão os objectivos da formação em cada um dos níveis de ensino, tendo como pano de fundo a preocupação de preparar os cidadãos (potencialmente todos, num conceito de escola inclusiva) para o livre exercício da cidadania, numa integração tão plena quanto possível na Sociedade do Conhecimento. Nesta perspectiva, os ensinos básico, secundário e superior não estão (nem poderão estar) ao serviço de elites, mas sim ao serviço de todos os cidadãos, proporcionando-lhes os saberes e competências adequados, cada um nos seus níveis e responsabilidades próprios. A intenção do alargamento da escolaridade obrigatória para o 12º ano, que esteve já prestes a ser concretizada, insere-se nesta visão e é um passo mais na democratização do sistema educativo.

    Coloca-se, assim, a questão de aprofundar a transformação da missão institucional nos estabelecimentos de cada um dos níveis de ensino, com vista a identificar os saberes a transmitir e os valores e atitudes a desenvolver, i.e., a identificar os objectivos da formação no sentido de, procurando responder ao desafio que se coloca aos sistemas de ensino nas sociedades modernas, reinventar a nossa relação estratégica com o conhecimento.

    Durante muito tempo, os saberes básicos estiveram essencialmente ligados às três competências clássicas do ler, escrever e contar. Uma tal abordagem sobre algo que deve ter carácter estruturante no facilitar a procura de soluções para a qualidade de vida e a valorização pessoal de cada um é claramente insuficiente para os cidadãos do Século XXI. Por sua vez, a aceleração científico-tecnológica conduz a ciclos de vida cada vez mais curtos para o conhecimento factual, que se desactualiza rapidamente, criando a necessidade de saberes mais estruturantes que habilitem para a construção continuada e permanente de conhecimento.

    Os saberes básicos devem, pois, ser entendidos como “competências fundacionais que se deseja que todos os cidadãos na sociedade da informação e do conhecimento possuam, harmoniosamente articulados, para aprender ao longo da vida e sem os quais a sua valorização pessoal, social e profissional se torna problemática” . Os saberes básicos integram conhecimentos, capacidades, atitudes e estratégias, devem ser orientados para a acção, i.e., não devem ser meramente teóricos; devem ser transversais, atravessando os modos convencionais de organização disciplinar do conhecimento; em síntese, os saberes básicos devem ser inteligíveis à luz das propostas educativas apresentadas em 1996 pela UNESCO no Relatório Delors , consubstanciadas em quatro pilares nucleares do novo aprender: “o aprender a ser”, “o aprender a conhecer”, “o aprender a fazer” e “o aprender a viver juntos”.

    Um importante estudo conduzido no âmbito do Conselho Nacional de Educação, que inclui o levantamento de experiências educacionais em outros países (EUA, Holanda, Espanha, Dinamarca e Reino Unido) com vista a uma identificação das principais tendências na definição dos saberes básicos, conclui por cinco saberes ou competências consideradas essenciais:

    – Aprender a aprender, como base para aprendizagens autónomas, implicando o desenvolvimento de estratégias cognitivas e também de estratégias metacognitivas, como sejam a reflexão crítica ou a monitorização dos próprios processos de aprendizagem;

    – Comunicar adequadamente, i.e., saber usar diferentes suportes e veículos de representação, simbolização e comunicação, nomeadamente no que respeita ao domínio da Língua materna e de pelo menos uma Língua estrangeira, ao uso da linguagem e expressão corporal para se fazer entender pelos outros e à exploração das TIC como meio de comunicação quer presencial quer a distância;

    – Exercer uma cidadania activa, expressa no agir responsavelmente sob o ponto de vista tanto pessoal como social (é a vertente axiológica dos saberes, que tem a ver com o agir num quadro ético de responsabilidade, solidariedade e tolerância);

    – Desenvolver espírito crítico, ou seja, a capacidade para emitir uma opinião pessoal com base em argumentos, competência esta que não se desenvolve em abstracto, mas faz apelo a conhecimentos multidisciplinares, representando um contributo importante para o exercício pleno da cidadania, nomeadamente porque leva as pessoas a procurarem as razões sobre o estado das coisas e, como tal, envolve escolhas reflectidas;

    – Resolver situações problemáticas e conflitos, competência transversal que envolve estratégias diferenciadas, como sejam as relativas à tomada de decisão, a processos de pesquisa, e à transferência e integração da informação, bem como o desenvolvimento de competências de mediação, negociação e assunção de risco.

    Essas cinco competências básicas não são independentes entre si, podendo cruzar-se e interagir de forma sinergética. São, como se depreende da breve análise efectuada, competências consideradas em sentido amplo, que integram conhecimentos, capacidades e atitudes, entendidos como saberes em acção ou em uso.

     Esta abordagem conceptual para os saberes básicos representa, como se disse, uma mudança de enfoque nos objectivos da formação, que passam a estar menos centrados nos conteúdos e a polarizar-se nas competências para o pensar, para o conhecer e para o agir. É uma abordagem que se insere, e deriva, do conceito de aprendizagem ao longo da vida, na concepção mais actual de uma aprendizagem que se desenvolve do berço à sepultura. Esta é, aliás, uma nuance interessante expressa no referido Relatório da Comissão Delors, que tem a ver com o privilegiar a vertente do “aprender” em relação à do “ensinar”, com uma ênfase especial na aprendizagem que tem lugar pela vida fora, i.e., uma aprendizagem que é feita “com a vida e fazendo do viver uma experiência com sentido e perpassada de plenitude cultural”. Não se tratará, pois, de uma mera questão de horizonte temporal (aprender no período temporal de uma vida inteira), mas de considerar a vida como “universo experiencial, singular e polifacetado, sobre o qual a reflexão pessoal acrescenta valor e confere sabedoria à existência” . É nesta linha de entendimento que a Comissão Delors definiu os quatro pilares do novo aprender atrás referidos: aprender a ser, a conhecer, a fazer e a viver juntos.

    O exposto tem consequências iniludíveis nos processos de ensino/aprendizagem. Desde logo, “a mudança de uma centração nos conteúdos para um enfoque sobre as competências para o pensar, para o conhecer e para o agir eticamente regulados, introduz uma profunda resignificação no conceito de curriculum e fundamenta novas propostas de reorganização curricular que procuram demonstrar os pressupostos dos paradigmas curriculares cuja matriz de racionalidade tecnicista não consegue compreender e explicar a complexa fenomenologia e interactividade das situações educacionais”.

     Importa, assim, “defender um outro olhar sobre a aprendizagem, menos centrado no professor, em favor de formas mais dinâmicas, auto-participadas e progressivamente mais autónomas de aprendizagem centradas no aluno”, ou, dito de outro modo, importa criar ambientes de aprendizagem que promovam o desenvolvimento dos saberes básicos dos alunos. Com esses saberes básicos, ficam construídas as ferramentas que permitirão “uma mudança de uma aprendizagem dirigida, hoje dominante, para uma aprendizagem assistida e, desta, para uma aprendizagem autónoma, de acordo com um percurso de responsabilização crescente de cada cidadão pela construção do seu próprio saber”.

    Coloca-se, pois, à Escola o enorme desafio de responder aos objectivos de formação assim reformulados, levando à prática formas inovadoras e motivantes de operacionalização de um paradigma pedagógico que vá para além da simples relação professor-aluno, dando corpo a um verdadeiro triangulo de aprendizagem, cujos vértices são o professor, o aluno, e o saber, e os lados traduzem as dimensões da formação (na relação professor/aluno), do ensino (na relação professor-saber) e da aprendizagem (na relação aluno-saber).

    Para que a Escola possa agarrar e vencer essa desafiante missão de contribuir para a democratização do acesso ao conhecimento, dotando os jovens com aqueles saberes não perecíveis que os habilitarão a serem cidadãos de corpo inteiro de uma forma sustentada e duradoura, o elemento humano, expresso no empenho dos agentes educativos, reveste-se de importância fundamental.

    Aliás, como afirma Roberto Carneiro  num dos seus escritos sobre o tema, “o futuro do ensino secundário, numa época de fortes ventos tecnológicos, nunca terá estado tão dependente do seu conteúdo humano e das condições da sua entusiástica mobilização”. Também o Prof. Diogo de Lucena, numa intervenção em que defende a descentralização e a diversidade nos sistemas educativos como factores para a sua qualidade, é peremptório na afirmação de que “os professores são o grande activo das escolas – 90% do capital das escolas não são os edifícios, são os professores, são o capital humano que lá está”. A preparação dos professores, tanto na formação inicial como na formação contínua, não pode deixar de ter em conta estas realidades, constituindo-se como factor nuclear para o sucesso das aprendizagens.

    O ambiente de trabalho nas Escolas é igualmente decisivo para a mobilização dos agentes e a orientação de ambientes de aprendizagem estimulantes em que predomine o gosto pelo saber, em todas as suas vertentes. Para o efeito, é fundamental que se dignifique a pessoa e o papel do professor e se desenvolva um quadro de autonomia real, responsabilizante, nas Escolas de todos os níveis de ensino, rompendo em definitivo com abordagens de “autonomia envergonhada” praticadas por sucessivas tutelas governamentais, com um controlo asfixiante por parte da administração central, em particular das Finanças, e tomando os devidos cuidados para que as transformações a introduzir se façam de forma participada e mobilizadora, evitando o denegrir – que se crê inadvertido, mas que tem consequências contraproducentes – da classe docente.

    É grande a tarefa com que, na nossa ligação ao sistema educativo, nos seus vários níveis, nos deparamos. Mas temos o aliciante de trabalhar com e para os jovens, de trabalhar com a educação, que é fonte perene de juventude. Como afirma o Professor e Escritor João Lobo Antunes  numa passagem a propósito de a educação ser “agora obrigada a inventar, para não perder o passo, novos modelos e novos métodos, em vigilante evolução adaptativa”: “Tenho cada vez mais a percepção biológica no acto de ensinar, da necessidade de adaptação, de sobrevivência, se quiserem. E, por esta razão, tal como a ciência, a educação está (…) condenada à risonha maldição de ser sempre jovem”.   

     

    Por: Sérgio Machado Santos*

    * Reitor Honorário

    da Universidade do Minho

     

     

     

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