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    Arquivo: Edição de 30-10-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    O meu primeiro dia de aulas

    Ao deixar-me na pensão em Bragança e antes de se despedir, o meu pai disse num tom firme:

    – Obedece à senhora Corina. De manhã, quando ela te chamar, levanta-te e arranja-te depressa para chegares a tempo às aulas. A pontualidade é muito importante. Nós vimos cá visitar-te de vez em quando e trazer os mantimentos conforme combinei com a senhora Corina.

    E terminava com o aviso de sempre:

    – Porta-te bem, que já és um homenzinho. Não admito que faltes ao respeito seja a quem for, sobretudo aos senhores professores e às pessoas desta casa.

    Deu-me um beijo, montou a cavalo e partiu. Fiquei uns momentos a olhar até vê-lo desaparecer ao dobrar da esquina. Empurrei a porta, subi a escada a correr e refugiei-me no quarto que me estava destinado. Atirei-me para cima da cama e chorei todas as lágrimas que tinha.

    Era a primeira vez que me via sozinho, longe dos carinhos dos meus pais e das brincadeiras com os meus irmãos mais novos, ausente aquela sensação de aconchego que nos tranquiliza quando estamos na casa familiar. Sentia-me perdido, rodeado de gente que mal conhecia, ia entrar no Liceu, aquele edifício antigo onde, há menos de dois meses, fizera o Exame de Admissão e que agora me parecia um monstro prestes a engolir--me. Era como se entrasse num mundo cheio de seres esquisitos: uns homens de fato, gravata e sapato fino, muito solenes; senhoras de saltos altos batendo os tacões pelos corredores adiante sem olharem para os lados; mais homens e mulheres de batas cinzentas que vigiavam os alunos e cumprimentavam os senhores professores ao passarem.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Não sei donde me vieram mais lágrimas, a verdade é que chorei o resto do dia, a intervalos, quando me distraía das lembranças felizes e o coração se me apertava. Apesar da tristeza, dormi bem naquela noite, para não fugir ao costume. No dia seguinte, logo que ouvi a senhora Corina, saltei da cama e acabei de afugentar o sono ao mergulhar as mãos na bacia do lavatório passando-as, a seguir, pela cara, dei um jeito ao cabelo e vesti-me em poucos minutos. Engoli a tigela de cevada que me esperava em cima da mesa e eis-me na rua, saca dos livros a tiracolo, em direcção ao Liceu, preocupado não fosse chegar tarde logo no primeiro dia e ouvir o raspanete do meu pai ao tomar conhecimento do descuido. Perder a hora significava também prolongar o nervosismo por mais algum tempo.

    No pátio ainda se viam poucos alunos, alguns quietos, de mãos nos bolsos e olhar receoso; outros à conversa com alguém que já conheciam; quatro ou cinco a correr muito animados. Estes deviam ser os rapazes da cidade, pareciam amigos de longa data. Pus-me à procura de algum rosto que me fosse, ainda que vagamente, familiar, mas a tentativa revelou-se inútil e fiquei ali plantado à espera. Eu era o único estudante da minha aldeia. Sabia que havia três ou quatro rapazes de terras vizinhas, mas era incapaz de os identificar entre tantos. Só nos dias imediatos é que nos demos ao conhecimento.

    O sinal veio de uma campainha colocada à entrada do edifício. Era uma miniatura dourada dos sinos que habitam os campanários das nossas igrejas. Havia uma corrente presa ao badalo que alguém puxava repetidas vezes. Ao menos, os sinos da minha aldeia eram tocados com arte, quem os manejava imprimia-lhes ritmo e andamentos diversos, conjugando o timbre agudo do sino mais pequeno e o grave do sino maior com a mestria dum organista. Subimos alguns degraus e fomo-nos colocando em fila, dois a dois, sob orientação dos contínuos (os tais funcionários de bata cinzenta), antes de nos conduzirem ao longo dum extenso corredor para onde abriam diversas portas. Para lá de cada porta havia uma sala de aula. Uma delas ceder-nos-ia passagem.

    Já estávamos em movimento quando chegou um miúdo espavorido, a deitar os bofes pela boca. Era o “Raspa” (puseram-lhe esta alcunha porque gostava de cantar e dançar uma canção com esse nome muito popular naqueles tempos) que tinha chamado as atenções gerais por usar relógio e pasta de cabedal claramente desajustados ao seu tamanho. O destempero deu origem a chacota. À minha frente, um rapazote de cabelo espetado à sovela e ar atraganado(1) tentou despertar a hilaridade da malta no seu linguajar aldeão bem carregado nos ss.

    – Bô!(2) Esse gajo anda ca cebola no braço mas, se calha, nim sabe ler as horas!

    Olhou em volta à espera de reacções, mas ninguém parecia com disposição para a risota. O que viu foi o contínuo dirigir-lhe um olhar enérgico e ouviu um “psst” bem sonoro capaz de frustrar novas brotoejas humorísticas, enquanto outra funcionária, braços estendidos e mãos na vertical como pás a espadeirar o linho, abriu, lá na frente, um espaço para o recém-chegado, ainda ofegante e mais vermelho que um rosalgar, ao mesmo tempo que o advertia:

    – Hoje, o menino entra porque é o primeiro dia. – e falou bem alto para que todos ouvíssemos – Daqui em diante quem não vier a tempo fica lá fora ou pode ir dar uma volta ao castelo.

    Entrámos na sala e sentámo-nos à espera do professor. Quando chegou, todos nos levantámos e assim permanecemos até que o mestre se acomodou e deu início à chamada.

    1 Atraganado – Travesso, reguila.

    2 Bô ! – Interjeição de admiração, surpresa ou desdém.

    Por: Nuno Afonso

     

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