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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-10-2006

    SECÇÃO: Destaque


    DEBATE NACIONAL SOBRE EDUCAÇÃO

    Processos de Desenvolvimento e Criatividade

    “A Voz de Ermesinde” organiza, no quadro do Debate Nacional sobre Educação – com o Centro Social de Ermesinde e a Escola Secundária Artística Soares dos Reis –, uma iniciativa que terá lugar no próximo dia 10 de Novembro, durante a noite, com início às 21h00, no Fórum Cultural de Ermesinde. O debate será subordinado aos temas “Escolas, professores e outros profissionais e “Aprendizagem ao longo da vida”

    No quadro do Debate Nacional sobre Educação, iremos manter nas nossas páginas uma reflexão permanente sobre os temas educativos, em particular os que mais incidência tenham no plano local. Mas daremos também toda a atenção a outras iniciativas e questões em aberto que entretanto surjam e que se prendam ou se aproximem, de algum modo, a esta temática.

    Neste número publicamos uma reflexão inserida na vertente do debate “Educação e Cidadania”.

    THE SLADE SCHOOL, “ILLUSTRATED LONDON NEWS”, c1880
    THE SLADE SCHOOL, “ILLUSTRATED LONDON NEWS”, c1880
    Desenvolver a expressão

    e estimular a criatividade

    O indivíduo revela-se em tudo o que faz. Através da pintura, da modelação, da dança, da música, exprime sentimentos, ideias e emoções. Não há comunicação sem expressão. Trata-se de uma necessidade vital. Aquele que não consegue exprimir-se corre o risco de ficar incomunicável e pode enlouquecer. Quando praticada com autenticidade, a expressão revela o ser.

    Ao nível mais profundo, a comunicação artística é intersubjectiva e não se satisfaz com os códigos conhecidos; ao nível mais superficial, a comunicação é meramente convencional, recorre a lugares comuns, sendo pouco inovadora…

    Sabemos que o sistema educativo estimula predominantemente o pensamento convergente, lógico e objectivo, baseado na observação, em detrimento da imaginação criativa, própria do pensamento divergente, intuitivo e subjectivo. Também sabemos que o excesso de tecnologia na sociedade contemporânea é responsável por uma expressão mecanicista e impessoal. A produção em série, através de processos mecânicos, conduz à massificação do gosto, promovida pela publicidade e pela moda. A Educação deve permitir o equilíbrio entre a mão e o espírito; entre o fazer e o ser. O fazer, só por si, leva ao artifício, puramente tecnicista. Nesta perspectiva, a técnica é subsidiária da expressão.

    A natureza inquietante e sonhadora do artista contrapõe-se, frequentemente, à realidade prática, utilitária e objectiva. Motivada por profundas motivações interiores, a sua forma de pensar, divergente e inovadora, pode contribuir para a criação de novos modos de agir, sentir e conceber.

    A Arte Contemporânea integra os mais variados suportes, desperdícios e detritos da civilização industrial. Um simples trapo ou papel amarrotado, a livre associação de fragmentos de objectos e de imagens, o contorno de sombras e de formas do acaso, tudo serve de pretexto para desencadear o mecanismo da expressão e da criatividade. A criança gosta de pintar, desenhar, modelar e construir, experimentando os mais diversos materiais. Sobre diferentes suportes, apreende a expressividade directa do traço, a percepção da linha que gera formas, o sentido estrutural do desenho e a harmonia das cores.

    A Educação Artística pressupõe conhecimentos básicos da História da Arte, numa perspectiva pedagógica, tomando como referência primordial o conhecimento psicológico da criança.

    Não podemos confundir Educação Artística com a mera aplicação de um conjunto de «receitas» técnicas que, normalmente, conduzem a formas estereotipadas ou convencionais de representação.

    No que diz respeito à Expressão Plástica, a criança deverá ter a oportunidade de escolher o seu próprio material e experimentar técnicas que estimulem a criatividade. A criatividade é um ponto alto da expressão. A expressão oscila entre a regra e a emoção; entre a norma convencional e a inovação. Compete ao professor proporcionar meios motivadores que contribuam para o desenvolvimento da capacidade expressiva e criativa da criança. Compete a cada um encontrar a forma de expressão que melhor se adapta às suas reais capacidades físicas e psíquicas.

    Através da expressão Livre, a criança projecta-se no que faz. Se a expressão livre, desde a infância, revela o ser, com todas as suas potencialidades criativas, a sua prática continuada ajuda a estruturar e a desenvolver a personalidade humana, intensificando e esclarecendo fenómenos puramente subjectivos, como a sensibilidade estética e a imaginação.

    É preciso ter uma sensibilidade artística apurada para entender e ser sensível à pureza e espontaneidade do desenho infantil. Não é por acaso que Picasso dizia que aprendia imenso a ver uma criança a desenhar. Qualquer pessoa com menos sensibilidade, não só não é capaz de dizer o mesmo, como não toma a sério os rabiscos infantis(1) . A ignorância da maior parte das pessoas, mesmo as mais instruídas, começa aí. Nesta circunstância, o papel do educador pela Arte é extremamente delicado e complexo, para não ferir a susceptibilidade dos adultos, nomeadamente a dos pais.

    Não há como a obra de arte para compreender o que é a expressão aprofundada e inteiramente assumida pelo artista, que revela não só a sua maneira de ser, como também a sua maneira de sentir e de pensar. Observando a arte actual, verificamos uma grande diversidade de estilos e tendências estéticas. Depende da nossa capacidade de saber ver ou distinguir as características dominantes aí implícitas ou, por outras palavras, depende da nossa educação visual, do grau de conhecimentos e de cultura para, em termos psicológicos, observarmos como é diferente e quantas vezes original a expressão pessoal, a autenticidade e o poder criativo da linguagem, tão capaz de desmontar códigos conhecidos, como de propor novos códigos.

    Ao evidenciar a técnica utilizada, a Arte Moderna estimula a vontade de experimentação, e torna-se acessível nas diversas tendências estéticas que preconiza. A diversificação da expressão amplia o sentido de novas linguagens. Trata-se de uma comunicação intersubjectiva, comum à expressão livre da criança e do artista. O que no artista é consciente e deliberado, na criança é prazer lúdico e intuição.

    No plano artístico, a expressão, além de profunda, é inovadora, contribuindo para novos modos de pensar, sentir e agir, pelo que a comunicação intersubjectiva nem sempre é fácil, apesar de surpreendente, enigmática e enriquecedora. Cada autor tem a liberdade de criar a sua própria linguagem, que não se limita à prática de meros exercícios académicos…

    O artista, tal como a criança, exprime-se em função da própria vivência, projectando na obra toda a sua relação afectiva com o mundo. Ao longo da História da Arte, temos vindo a observar, por vezes, que, quanto mais inovadora é a expressão, mais difícil se torna a comunicação. Foi esse o drama de grandes pintores, como Van Gogh que, incompreendido pela sociedade do seu tempo, viveu com extrema dificuldade, acabando por se suicidar. Foi preciso esperar mais de meio século para a sua obra ser reconhecida e consagrada em todo o mundo. A Arte tem uma componente ética, estética, poética e filosófica, pelo que não só documenta a sua época como, em muitos aspectos, a antecede e ultrapassa.

    A Arte é hoje entendida através de um renovado olhar. O que, outrora, foi considerado como expressão rudimentar, inábil ou inacabada, própria de quem “não sabe desenhar ou pintar”, segundo retrógrados conceitos académicos, é hoje olhado com mais respeito por psicólogos e pedagogos. Manifestações pessoais e originais não podem ser adulteradas por caducos sistemas de avaliação.

    Os temas actualmente escolhidos e as técnicas ou os modos de desenhar, pintar ou modelar diferem bastante daquilo que, convencionalmente, se definia como “boa pintura” ou “boa escultura”. Algo evoluiu no gosto e na atitude mental que permite a aceitação das várias formas de expressão. Actualmente, existem Museus de Arte Bruta, onde se integram a pintura infantil, a expressão espontânea do homem comum (arte naïve) e a arte psicopatológica, que se manifestam à margem do ensino artístico. Organizam-se exposições com visitas guiadas e sessões de animação pedagógica, destinadas a grupos escolares.

    É através da expressão lúdica, que a criança aprende. Brincar é a forma mais natural de auto-aprendizagem. A criança brinca porque quer crescer e porque é saudável. Quando não há prazer no que se faz, há mal-estar e, consequentemente, o produto é esforçado e anti-natural. Os jogos, a brincadeira, a pintura, as construções, a modelagem, o prazer da descoberta ou o que a criança é capaz de aprender pelos seus próprios meios, tornam a sua vida mais aliciante e mais feliz(2) , porque eminentemente lúdica e sem fronteiras.

    Integrada na sociedade consumista em que vivemos, a criança não pode deixar de ser sensível à inevitável influência dos mass media, frequentemente imitando o adulto e desvirtuando a sua expressão original. Nos melhores casos, revela uma personalidade independente, capaz de reagir contra essa influência, descobrindo intuitivamente as normas elementares em que se baseia o modo como se organizam as formas e as cores, no plano e no volume.

    No desenho, o estereótipo, que consiste em repetir mecanicamente esquemas de representação inexpressiva, deve ser combatido ou, pelo menos, não estimulado. Quantas vezes a mão do adulto (do pai, da mãe ou do professor) actua em detrimento da pureza do traço infantil, numa atitude de pseudo-ajuda, que não podemos deixar de condenar. Conscientes destas e outras influências inevitáveis, os educadores e professores devem estar atentos, no sentido de defender a autenticidade e a singularidade da expressão. “A Arte não entra na criança; sai dela”, diz Arno Stern, que mostra assim a diferença entre quem está na origem da Arte (a criança e o primitivo) e quem a utiliza como obra acabada e arrumada nos museus. Afigura-se-nos, no entanto, ser da maior importância o contacto da criança com a obra de arte, de expressão diversificada. Ao suscitar diferentes interpretações ou modos de abordagem, a Arte contribui para o despertar da sensibilidade estética e para desbloquear a criatividade, proporcionando a descoberta das mais variadas técnicas e formas de expressão, bem como o pleno desenvolvimento da personalidade, que age e reage como um todo psicossomático (corpo e mente). Na Arte Contemporânea, a técnica está à vista e ao alcance de qualquer mão, tendo deixado de ser “ segredo de atelier”. Talvez por isso haja menos preconceitos e maior abertura mental. Hoje, a criança aceita tudo isso com naturalidade, em formas abstractas ou figurativas.

    O conhecimento da Arte, numa correcta perspectiva histórica e pedagógica, contribui para o entendimento da expressão livre(3) . Ao exprimirem-se livremente, as crianças e os jovens adquirem autoconfiança e tornam-se mais responsáveis e cooperantes no relacionamento com os outros. Respeitando a expressão pessoal de cada um, é possível realizar surpreendentes trabalhos individuais e colectivos através de técnicas que estimulam a criatividade, como a colagem, a montagem objectual, a frottage, a decalcomania e muitas outras, que o professor, sensibilizado e informado no domínio das artes plásticas, poderá sugerir oportunamente.

    «Todos os indivíduos são potencialmente criativos. (…) A criatividade pode cultivar-se individualmente e em grupo, através de experiências que estimulam o pensamento divergente que, ao contrário do pensamento convergente, em vez de uma única solução, aceita várias soluções possíveis, vários modos de resolver o problema. (…) Menos adstrito à conformidade da resposta do que à sua originalidade, tranquilo em face das questões amplas e mal definidas, o pensamento divergente é capaz de apreender relações entre factos nunca anteriormente notados e de produzir formas novas, através de ensaios e de erros, por “aproximação experimental”»(4) . É o pensamento divergente que caracteriza o espírito de aventura e fantasia do artista inovador.

    A Escola deve criar condições que favoreçam o desenvolvimento de uma relação de equilíbrio entre o pensamento convergente ou lógico e o pensamento divergente ou intuitivo que, sendo complementares, fazem parte da formação integral do indivíduo. Os Programas devem adaptar-se à criança e ao seu desenvolvimento e não a criança aos Programas. O professor tem autoridade pedagógica para os interpretar e, se necessário, alterá-los, em favor de uma prática docente mais adequada ao desenvolvimento da personalidade dos seus alunos.

    (...) Não podemos deixar de reconhecer o papel da Arte na formação da personalidade do indivíduo, pelo que a Educação Artística não pode deixar de figurar como componente essencial nos programas escolares dos vários graus de ensino desde o Jardim-de-Infância até ao Superior.

    1 – Tanto a arte da criança como a do homem pré-histórico começam pelo abstracto (garatujas). Mas o que fica na memória do senso comum são os girinos ou cabeçudos infantis e os animais pré-históricos gravados nas grutas, isto é, o figurativo. O senso comum aceita melhor a figuração do que a abstracção, que não pretende representar as aparências do mundo exterior. Dizer que «não se entendem os rabiscos», não basta! E é grave, sobretudo no caso dos que se dizem eruditos…Toda a Arte procura uma visão sintética da realidade, e, nessa medida, não deixa de abstrair, exprimindo o essencial e excluindo o acessório. Aquele que compreende a Arte Abstracta, está em muito melhores condições de compreender a Arte Figurativa, porque, não se contentando apenas com o tema, é sensível às leis da composição que determinam as relações formais e cromáticas, aspectos comuns à Arte Abstracta e à Arte Figurativa.

    2 – A criança é feliz nas suas brincadeiras. O conceito de felicidade, no caso do adulto, é muito relativo e discutível. As pessoas conformistas podem ser felizes à sua maneira…apregoando um “ideal de felicidade superficial”, que os mais sensíveis, nomeadamente os artistas rejeitam ou põem em questão. As pessoas pouco ambiciosas em termos intelectuais e culturais, lutam pela aquisição de bens materiais, mas descuram os bens espirituais, como a Arte. As suas casas raramente ultrapassam o trivial e frequentemente são exemplo de manifesto mau gosto, bem como a maneira como se vestem e cuidam do próprio corpo…Em contrapartida, o artista, sendo um ser por natureza insatisfeito, tem necessidade de ser criativo, para aprofundar e melhorar a sua relação com o mundo que o rodeia, intervindo nele activamente, com formas inovadoras que chocam, e por vezes escandalizam o senso comum. Tal atitude pressupõe uma séria crítica ao sistema dominante e a necessidade de o transformar. Em termos psicanalíticos, a criatividade é sintoma de saúde mental. Ninguém nega a função terapêutica da Arte. Já Nadir Afonso afirmou: «Aquele que encontrou a Arte está meio curado».

    3 – É importante lembrar que, propor à criança um trabalho livre, não basta! Não basta dizer: «hoje é trabalho livre, façam o que quiserem!», como infelizmente ainda muitas vezes acontece…e que corresponde, a não se ter preparado nada para aquela aula…Quando o professor procede desta maneira, as crianças/jovens fazem sempre a mesma coisa, caindo no estereótipo e no banal. É aí que as técnicas que estimulam a criatividade podem contribuir para combater o estereótipo. É urgente fazer ver que a Expressão Livre não é uma «balda»! Muito pelo contrário: a expressão livre só faz sentido, quando é inteiramente assumida pelo próprio, sendo, porventura, a forma mais elevada de responsabilidade.

    4 – Gonçalves, Eurico – A Arte Descobre a Criança, pp. 23-24, Raiz Editora, 1991.

    Por: Dalila D’Alte Rodrigues

     

     

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