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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-01-2022

    SECÇÃO: Direito


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    Esta coluna não é uma ilha

    Em carta remetida a Robert Hooke, em 1675, Isaac Newton refere que se viu mais longe, foi por se ter colocado sobre os ombros de gigantes(1). Não verei mais longe, mas não tenho desculpa; porque, ao aceitar o amável convite para preencher estas linhas, sabia que me colocaria sobre os ombros de gigante.

    A última vez que tive a oportunidade de estar na presença do Dr. José Puig foi em 8 de maio de 2018, quando ambos fomos oradores numa conferência sobre a Justiça. Recordarei sempre a elevação e a qualidade da palestra que ministrou, com uma capacidade de prender quem o ouvia e em que demonstrou dominar a arte rara de nos fazer pensar.

    Foi um desafio fazer a intervenção a seguir a tão ilustre colega de profissão. O objetivo prendia-se com transmitir a opinião sobre a Justiça por parte daqueles que fazem a sua vida nos tribunais. Na altura, como agora, defendi que, da perspetiva do foro, há um problema de fundo com a Justiça, que acaba por ser ubíquo e impedir uma avaliação justa do sistema. É um problema que afeta a perceção da Justiça, o acesso à Justiça, e afeta a própria realização da Justiça - a própria busca da verdade material. Este problema de fundo prende-se com a celeridade processual.

    Efetivamente, vários indicadores internacionais confirmam aquilo que se sente no quotidiano dos tribunais. Os processos são lentos, a Justiça é morosa. Não é possível apontar uma razão única para esta situação, uma vez que são vários os fatores que contribuem para esta realidade, como as condições de trabalho, a distribuição de espaço, recursos humanos e equipamentos, bem como a organização judiciária(2).

    O foco da intervenção foi a organização judiciária. A reforma do mapa judiciário constituiu um marco importante na tentativa de reverter tal situação. Ainda que a reforma tenha trazido boas soluções, como a crescente especialização dos tribunais, há duas críticas que devem ser feitas.

    José Puig (1961-2021)
    José Puig (1961-2021)
    Desde logo, existem falhas na implementação do mapa que não devem ser descuradas. Tal deve-se, nomeadamente, devido ao facto de as decisões relativas a todo o país terem sido tomadas centralmente, sem atentar às circunstâncias locais.

    Depois, há uma crítica de fundo a fazer relativamente ao modelo de mapa judiciário implementado. Hoje, as comarcas assentam na divisão distrital do país. Sucede que, o distrito é uma circunscrição obsoleta – serve pouco mais do que para a organização da Proteção Civil e a definição dos círculos eleitorais nas eleições legislativas. Note-se, até, que foi o governo que lançou o atual mapa judiciário que atestou o óbito – há muito anunciado – dos governos civis. Perdeu, então, o Estado a sua capacidade de decidir ao nível do distrito - uma vez que não existe qualquer entidade (nomeadamente, política) capaz de definir ou, sequer, implementar uma política ao nível distrital.

    De facto, a intervenção do Estado ao nível regional (ou supramunicipal) há muito que assenta nas regiões, sendo coordenada pelas CCDR.

    A organização judiciária não é independente da restante organização do Estado. Assim, mal se compreende que o mapa judiciário assente numa lógica do distrito – cada comarca, à exceção de Lisboa e Porto, corresponde aos antigos distritos.

    Em suma, o Estado não dispõe de instrumentos para o planeamento ao nível distrital –– nomeadamente, ao nível das infraestruturas e vias de comunicação.

    O convite para preencher as linhas até aqui escritas pelo Dr. José Puig fez-me reviver aquela noite, em que tanto aprendi e em que a discussão foi tão profícua. É com saudade que recordo o meu interlocutor naquele debate, como estou certo que, com saudade, o recordam os leitores d’A Voz de Ermesinde. Esta recordação fez-me desviar do foco que esta coluna terá – a discussão sobre temas jurídicos atuais, que sejam relevantes para o público em geral. A esta abordagem voltarei na próxima edição.

    Em 8 de maio de 2018, na presença do Dr. José Puig, concluí afirmando que a Justiça não é uma ilha. Aqui, na mesma presença, termino afirmando que esta coluna não é uma ilha.

    1- No original: “if I have seen further, it is by standing on the shoulders of giants.” - https://discover.hsp.org/Record/dc-9792/ , acedido em 27 de janeiro de 2022.

    2- http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/23454/1/Guilherme%20Alberto%20Mendes%20Pereira.pdf , acedido em 27 de janeiro de 2022.

    Daniel Torres Gonçalves – Erga Omnes

    [email protected]

    Nota de redação:

    Quase um ano depois da despedida ao nosso ilustre jurista e prestigiado colaborador, na área do Direito, o saudoso Dr. José Puig, damos a pena a outro jurista da nossa “praça” Dr. Daniel Torres Gonçalves. Bem-vindo Dr. Daniel.

    Por: Daniel Torres Gonçalves

     

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