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Edição de 29-02-2024
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    Arquivo: Edição de 30-05-2018

    SECÇÃO: Crónicas


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    Amor Insuspeito

    O verão caneava e já se pressentia a chegada do outono pelos anoiteceres temporãos, as primeiras chuvas e as temperaturas tendencialmente mais baixas.

    A 8 de setembro, realizava-se, no alto da Serra da Nogueira, próxima de Bragança, uma festa religiosa denominada Nossa Senhora da Serra em honra da Natividade da Virgem Maria, precedida de novena que reunia milhares de devotos de múltiplas aldeias vizinhas. Muitas famílias constituídas por casais, respetivos filhos e até amigos, ali vinham, anualmente, instalando-se nos chamados quartéis(1) para assistirem aos atos religiosos que decorriam nos nove dias (novena) que precediam a festa. À parte religiosa associavam-se atividades profanas: comerciais (tendas em que se transacionavam objetos úteis ou apetecíveis para a gente do campo como espelhos, pentes, brinquedos de madeira ou de lata, bonecas de celuloide, juntas de bois em barro envernizado); lúdicas (bailes, jogos do ring e da bola) desportivas (jogos dos paus, do fito, da relha, do ferro). Havia ainda os jogos de cartas incluindo o transgressor jogo da batota por isso mesmo realizado em sítio esconso para ludibriar a polícia.

    Esse evento era tão importante para as pessoas, quer da cidade, quer das aldeias, que, ao arrepio do calendário, determinava o fim de uma estação e o início da seguinte: "A Senhora da Serra tira a merenda e dá a vela" proclamava o adágio popular. Com efeito, sobrevindo a noite mais cedo uma vez terminadas as extenuantes tarefas agrícolas de verão, não fazia sentido "levar a merenda" aos trabalhadores que mais cedo retornavam a casa; por outro lado, sendo o período noturno, a partir de agora, gradualmente maior, alongava-se o tempo do serão ou vela em convívio familiar ou com visitas de e a amigos e vizinhos, em redor de lareira crepitante espevitada e realimentada de quando em quando. Durante algum tempo ainda, se não chovesse, seria preciso madrugar no dia seguinte para arrancar batatas ou ir buscar carros de lenha, cortada meses antes, que alimentasse a lareira durante o próximo inverno ou que permanecesse no sequeiro(2) por precaução não viessem noites agrestes mais lá para diante.

    Ao invés de outros lavradores que preferiam entreter-se contando histórias de almas penadas ou repetindo, pela enésima vez, anedóticos acontecimentos ocorridos na aldeia em tempos idos, o meu pai, uma vez terminada a refeição seguida da Bênção da Mesa(3), ia buscar um dos seus amados livros(4) e partilhava connosco o prazer da leitura. A minha mente infantil registava as vicissitudes de Jean Valjean, de origem humilde que, desempregado, rouba um pão para matar a fome de sua irmã e seus sete sobrinhos e vem a ser condenado a cinco anos nas galés sucessivamente acrescidos por reiteradas fugas até um total de 19 anos sempre perseguido pelo zeloso inspetor Javert. Por ter sido presidiário, não encontra trabalho nem acolhimento de ninguém a não ser do bispo de Digne, Monsenhor Benvindo, que o recebe, lhe dá de comer e lhe proporciona agasalho. Ao abrigo da noite, foge levando consigo os talheres de prata com que tinham comido e, uma vez preso ao tentar vendê-los, é levado à presença do seu benfeitor que garante aos guardas ter-lhos dado lembrando ainda ao detido que este se esquecera de levar também os castiçais de prata que estavam em cima da cómoda. Com o produto da venda desses valiosos objetos pode ajudar a irmã e os sobrinhos. Muda também de vida e de nome tornando-se o respeitável Senhor Madeleine, homem de negócios, ainda que a sombra do inspetor Javert continue a acompanhá-lo. Dotado de compleição forte em resultado dos anos de galés, consegue salvar um homem que ficara debaixo de uma carroça enterrada num lamaçal levantando-a e assim permitindo que a vítima se salve, episódio este que confirma ao inspetor a suspeita de que o Sr. Madeleine e Jean Valjean são a mesma pessoa. Este era o enredo do 1º volume da obra mais conhecida do escritor francês Victor Hugo sob o título geral de "Os Miseráveis".

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    Outras vezes, era "O Conde de Monte Cristo" de Alexandre Dumas, pai (5) o livro escolhido. E, preso das palavras lidas por meu pai, eu acompanhava a chegada do navio Pharaon ao porto de Marselha onde o proprietário, senhor Morrel, o aguardava. Em vez do capitão, que morrera durante a viagem, é Edmond Dantès, o imediato, quem o vem saudar explicando-lhe o infausto acontecimento, depois de ter dado ordens aos marinheiros para a atracagem. Dantès era um homem muito competente para as lides do mar, por isso invejado por Danglars que cobiçava o posto por ele agora desempenhado. Vivia-se uma época turbulenta em França nesse período pós-revolucionário e com a ascensão de Napoleão Bonaparte. Além de Danglars, Dantès tinha outro inimigo, o catalão Fernànd Mondego que lhe cobiçava a namorada Mercedes. Acusado de bonapartista, no período em que Napoleão se encontrava preso na ilha de Elba, é preso, condenado e enviado para a fortaleza de If, situada numa ilha a cerca de dois quilómetros da costa francesa. Ali trava conhecimento com outro prisioneiro um reputado cientista conhecido como Abade de Faria (6). Pacientemente, Edmond Dantès vai abrindo um túnel entre as duas celas tarefa que, uma vez terminada, proporciona ao jovem marinheiro longas conversas com o sábio. Este, antevendo já o fim dos seus dias, revela ao amigo o segredo da existência de um valiosíssimo tesouro na ilha de Monte Cristo. O Abade morre pouco depois e Dantès empreende diligências bem-sucedidas para trocar de lugar com o cadáver jogando com os horários de visita dos carcereiros. Atirado ao mar, consegue libertar-se do envoltório e do peso que deveria arrastar o cadáver para o fundo do mar e nada na direção do continente. De pronto dirige-se à ilha, localiza e desenterra o tesouro e dirige-se a Paris onde passa a viver com opulência, assumindo o título de Conde de Monte Cristo e vingando-se de todos os seus inimigos.

    Outras vezes era uma das obras do escritor catalão Henrique Perez Escrich muito em voga no Brasil nas décadas de trinta e quarenta do século XX: "O Mártir do Gólgota", romance que entretece as vidas de Jesus com as dos criminosos que haveriam de padecer a crucificação a seu lado. Dimas, o bom ladrão, nasceu pobre e ainda muito jovem perdeu o pai. Foi pedir ajuda a todos quantos poderiam conceder-lha para o enterrar mas nada conseguiu. O líder da comunidade mandou-o embora dizendo que quem era pobre deveria ser atirado para uma estrumeira. Revoltado, abandona o povoado e sobe à montanha. Descobre a entrada de uma gruta, entra e descansa durante horas. É acordado por um ruído e vozes ásperas que altercam. Senta-se e observa tranquilo antes de darem pela sua presença. Um deles quer agredi-lo mas outro, que parece ser o chefe do grupo, intervém. É Giestas. Aquele é o sítio onde a quadrilha se esconde e guarda o produto dos saques. Giestas interroga o jovem e este responde de forma que lhe agrada. A partir de então, Dimas é aceite e passa a integrar o grupo de malfeitores. Pouco tempo depois, ele é já o segundo na hierarquia dos ladrões e ganha o respeito dos colegas pela sua inteligência e valentia. Um dia passa pela serra um casal com o seu burro. Montada vai uma mulher com o filho nos braços. Giestas trata-os com aspereza mas Dimas enternece-se e não deixa que lhes façam mal. São recolhidos na caverna e os ladrões ficam a saber que eles fogem para o Egito porque o rei Herodes vai mandar matar todas as crianças com menos de dois anos de idade. Ali passam a noite e Dimas impede que algo de mal lhes aconteça. Alguns anos depois, Dimas e Giesta, o Bom Ladrão e o Mau Ladrão hão de morrer lado a lado com aquele menino, Deus feito homem.

    Também de Perez Escrich, havia o "Manuscrito Materno". A ação do romance decorre em Madrid no século XIX e tem como protagonistas dois jovens namorados de classe alta residentes em Madrid. Ambicionam casar e traçam planos para o futuro mas a descoberta de uma longa carta escrita pela falecida mãe de um deles vem revelar-lhes que são irmãos. É em torno do tema do incesto que o autor desenvolve a história que há de servir a outros romancistas como Eça de Queirós em "Os Maias".

    Em língua portuguesa havia o romance entre Bentinho e Capitu (Capitulina) no romance "Dom Casmurro" de Machado de Assis; de Periíndio goitacás e Cecília filha de D. António de Mariz, senhor de engenho, personagens de "O Guarani" de José de Alencar assim como Diva e também Iracema do mesmo autor.

    O meu pai tinha trazido esses livros do Brasil aquando da sua primeira estada nesse país e por cá os deixou quando teve que reemigrar. No seu regresso em definitivo, já não existiam. Tinham sido lançados ao fogo pela minha mãe a conselho de um primo padre sob a acusação de estarem incluídos no Index, espécie de catálogo da Igreja Católica por difundirem a vingança e o suicídio.

    (1) Quartéis - Divisórias de aproximadamente 6m2 em sequência, abrindo para um corredor.

    (2) Sequeiro - Nome dado ao lugar ao ar livre onde era depositada a lenha que, depois de cortada em pequenos pedaços era levada para junto da lareira.

    (3) Bênção da Mesa - Oração de agradecimento a Deus pelo alimento concedido.

    (4) "…um dos seus amados livros…" - Livros adquiridos no Brasil, pertencentes ao período do Romantismo.

    (5) "Alexandre Dumas- pai - para o distinguir do seu filho Alexandre Dumas - filho, também escritor famoso, autor de muitas obras sendo as mais conhecidas "A Dama das Camélias" e " O Caso Clémenceau" (L'Affaire Clémmenceau). Foi distinguido com a Legião de Honra e admitido como membro da Academia Francesa.

    (6) Padre José Custódio de Faria. Nasceu em Goa, em 1746, e faleceu em Paris, em 1819. Dedicou-se aos problemas da mente. Escreveu o livro “De la Cause du Sommeil Lucide”, lançou as bases científicas do magnetismo. Foi percursor do sono hipnótico como fenómeno psíquico de caráter natural.

    Por: Nuno Afonso

     

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