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    Arquivo: Edição de 28-02-2017

    SECÇÃO: Crónicas


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    Palavras sábias e estimulantes

    Há pessoas que determinam o curso da nossa vida sobre ela derramando a luz que nos orientará ao longo do caminho. Uma palavra dita em contexto propício pode ter efeitos certeiros, dir-se-ia milagrosos, no devir do seu destinatário pela intencionalidade e pelo estímulo que nele desperta e opera. Quantos futuros não terão resultado de uma frase dita no momento certo? Só o tempo avaro no-lo pode confirmar mas raramente a tempo de podermos atingir o seu alcance e de agradecermos a quem a pronunciou. Ainda que pudéssemos tê-lo feito, fomos deixando passar a ocasião à espera de outra mais propícia. Julgamos sempre que temos todos os dias do mundo e esse agradecimento, que deveria ser urgente, vai-se protelando ad infinitum e não mais se manifesta. O mais importante pode até nem ter sido uma simples palavra, semelhante a muitas outras, mas a precisão do seu alcance e o fruto que dela resultou. Connosco fica a pena, se não o remorso, de não termos sabido agradecer enquanto foi possível.

    Não, não me refiro a ditos de grandes figuras públicas, que a História guardou, pronunciadas num tempo preciso visando obter um efeito político de adesão às iniciativas de um líder fossem de incentivo, de encorajamento ou de justificação. Podem ser frases de efeito que alguém colou a personagens que protagonizaram ou de algum modo interferiram em acontecimentos históricos relevantes, a seguir repetidas, vezes sem conta, para ilustrar episódios com aproximado grau de semelhança. Também não me refiro àquelas frases atribuídas a membros de uma determinada comunidade, vivos ou já falecidos, circunscritas a um certo espaço e a uma época limitada. Essas, via de regra, vão desaparecendo à medida que as gerações se sucedem.

    Refiro-me, naturalmente, a palavras ouvidas de alguém muito próximo, pronunciadas como chamadas de atenção em determinada circunstância mas alcançando horizonte longínquo como se fora um oráculo. Houve tempos em que, no campo ou na cidade, tudo decorria com tal normalidade que aos pais nada mais se exigia do que ensinar e mostrar aos seus filhos como deveriam proceder quer quanto ao trabalho, quer quanto às relações sociais e morais. Os que então eram filhos, recebiam essas lições e passavam-nas aos próprios descendentes num mimetismo quase perfeito. Havia, é certo, algo de criativo em cada geração de acordo com as circunstâncias da época e a própria forma de ver e de sentir o mundo assim como pessoas mais esclarecidas para o tempo que foi o seu.

    Em meados do século passado, larguíssima percentagem da população portuguesa vivia no campo e dele retirava os seus meios de subsistência. Cidades e vilas guardavam sensivelmente a mesma fisionomia de séculos precedentes com um centro tradicional mais ou menos alargado de acordo com as vicissitudes da História e o dinamismo de certas personalidades locais; repartições públicas que estabeleciam as ligações entre o Poder Central, as autoridades de cada lugar e os cidadãos; estabelecimentos comerciais cuja propriedade, em geral, passava de geração em geração; escolas do ensino primário, liceu ou escola comercial para o ensino secundário, uma escola chamada do Magistério Primário que preparava os professores do primeiro grau, um que outro colégio particular maioritariamente de cariz religioso; uma ou mais boticas (farmácias), quiçá um hospital público (em poucos casos) ou das Misericórdias; igrejas, um mercado, mercearias; bairros periféricos e quintas agrícolas que faziam a transição entre a vida rural e a vida urbana.

    Os meus antepassados viviam na aldeia e cultivavam as terras que lhes davam o pão-nosso de cada dia. Pais e filhos crescidos trabalhavam as terras, mães e filhas dedicavam-se às tarefas domésticas e ajudavam os homens sempre que era preciso. Aos mais pequenos estavam reservados ofícios como cortar e levar lenha para alimentar o fogo doméstico, encher e transportar jarros e cântaras de água para as necessidades da casa, guiar os animais de tiro para os pastos e tomar conta não fossem invadir propriedades alheias.

    Eu teria os meus sete ou oito anos, e havia terminado o ano letivo com bons resultados. Mesmo sabendo que tal não me isentava do cumprimento de outros deveres, jogava com o trunfo do amor materno para prolongar o período de descanso. Mas, em casa de lavoura, não há dispensa de serviço e bem sabia que, quando os animais não eram necessários para o trabalho agrícola, alguém tinha que os conduzir ao lameiro e tomar conta não fossem ir além dos limites. Em dias quentes, tinham que sair cedo antes que o calor apertasse, o mosquedo importunasse os bichos e os fizesse acolher à sombra das árvores que bordejavam os pastos. Minha mãe chamara-me havia algum tempo e esperava que me despedisse do aconchego dos lençóis porém eu ia-me demorando sempre à espera da segunda ou da terceira chamada. Ela já abrira a porta do curral, os animais já tinham saído para o caminho e eu "fazia render o peixe" que é como quem diz fingia que andava mas não saía do lugar. Quando as coisas já excediam todos os limites e eu passava por ela sem pressa arrastando os sapatos, mas conhecendo-me como só as mães conhecem, ao invés de me castigar, pronunciou estas palavras que nunca mais esqueci:

    - Ai, filho, filho! Se não for pelo estudo, não sei o que será de ti!

    Condoída pela minha preguiça e a minha desobediência para além do aceitável, ela sabia que nenhum castigo físico seria tão eficaz do que apontar-me o caminho que tinha de seguir.

    Aquelas palavras - um misto de censura e de incentivo - calaram fundo no meu espírito. Estudei e, mesmo quando tive que voltar ao meu país de nascimento para ajudar o meu pai nas atividades comerciais que desenvolvia, reparti-me entre ajudá-lo e continuar a estudar. Fui, assim creio, o único jovem português desse tempo a interessar-se pelos estudos no país de acolhimento. Obtive um diploma do Ensino Superior na Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC) e, anos depois, voltei aos bancos da escola para me licenciar em Românicas, curso equivalente ao de Línguas e Literaturas Modernas atual.

    O projeto de vida que os meus pais cedo se propuseram de mandar os filhos estudar quando, na aldeia, raras eram as crianças que terminavam a 4ª classe, foi alcançado com grandes sacrifícios seus e a ajuda dos sete filhos. Em vez de um sofrível lavrador ou de um bem-sucedido (?) homem de negócios "do outro lado do mar", enveredei pela carreira de professor que me deu, como a minha mãe augurava, a plena realização. Se, como escreve António Lobo Antunes, "os mortos andam por aí, caminham connosco por onde quer que vamos", os meus pais hão de estar contentes porque todos os seus filhos deram cumprimento ao seu desejo. Embora não lhe possa expressar a minha gratidão, a autora dos meus dias há de saber quão certo foi o seu augúrio.

    Por: Nuno Afonso

     

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