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    Arquivo: Edição de 30-05-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Extravagância e excentricidade

    Quem, no trato social, diverge dos padrões comportamentais comummente aceites no seu grupo, seja na escola, no trabalho, na aldeia, vila, cidade ou bairro, fica exposto à crítica negativa dos demais. Já não refiro a maledicência gratuita de vizinhos, colegas de profissão ou de militância, que veem no “outro” um competidor apenas bafejado pela sorte enquanto de si próprios fazem um conceito bem mais lisonjeiro, o reverso da medalha, manifestação da inveja mesquinha, velha e relha, logo ineficaz, arma dos fracos. Esses nunca compreenderão que as maiores vítimas do comentário maldoso serão eles, porque a inveja tem, com frequência, um efeito boomerang, além de não escaparem à sabedoria popular que a eles se refere em provérbios e expressões idiomáticas censórias, abundantes na nossa língua como em muitas outras, por isso mesmo dispensáveis agora e neste lugar.

    O que tenho em mente é um conjunto de procedimentos que vão em contracorrente ao que é habitual: aqueles que, passados os primeiros momentos de estranheza e repúdio pela novidade, tornam-se modelos e tendem a generalizar-se; abusos em relação à dignidade e à propriedade alheias, perpetrados com sobranceria e indiferença por indivíduos que, por sua posição social, se julgam acima da lei. No primeiro lustro dos anos cinquenta, o Totó, originário de uma aldeia do concelho de Macedo de Cavaleiros, se não me falha a memória, veio frequentar o Liceu de Bragança, então único nesse distrito, acompanhado do irmão Germano. Eram órfãos mas herdaram bens que lhes permitiam conforto material e uma desenvoltura que à maioria não eram consentidos. Vai daí, o Totó começou a dar nas vistas pela maneira como se apresentava. Um dia, apareceu envergando calças vermelhas o que provocou escândalo e comentários pouco lisonjeiros. Raríssimos ousariam enfrentar olhares perplexos, risos trocistas e bisbilhotices ditados pelo conservadorismo reinante. Porém, o Totó não era fácil de vergar, já previa tais reações e, dias mais tarde, saiu de calças cozidas com remendos de várias cores e formatos, em quadrado, em rectângulo, em losango. Quem usava calças remendadas eram os mais pobres, recurso último antes de ser forçado a comprar roupa nova. Não se lhe afigurando de somenos tal “falta de respeito”, o polícia de giro interpelou-o naquele tom de voz áspero e autoritário que esses tempos avalisavam. O rapaz desculpou-se e o polícia, que, para si, achou graça ao atrevimento do jovem, ordenou-lhe que fosse mudar de indumentária e que não repetisse a façanha. Pois sim! Não demorou muito e nova “afronta” obrigou o agente a conduzi-lo à esquadra. Visto o “crime” não constar na relação de malfeitorias passíveis de enquadramento legal e porque o rapaz, pela sua irreverência, lhe despertou simpatia, o oficial de dia mandou-o embora, não sem antes o ter admoestado com o único argumento disponível de que parecia mal andar assim ataviado. O Totó dirigiu-se à Praça da Sé onde a rapaziada o esperava para, juntos, comemorarem a façanha com umas partidas de bilhar no Central, porventura com uns cafezitos, se o amigo estivesse para aí virado. Extravagante nos seus tempos de rapaz e, tendo em conta a quebra de tabus profundamente enraizados, com propriedade se pode dizer que foi pioneiro. É certo que passariam ainda alguns anos até que as infrações aos bons costumes se tornassem mais assíduas até que virarem rotineiras Lembro-me da primeira mulher que apareceu na cidade trajando calças e que, ao aperceber-se de que era seguida por rapazes que lhe dirigiam piropos, moças que a miravam disfarçadamente e soltavam risinhos de mofa, homens e mulheres que paravam e lhe dirigiam olhares reprovadores, caminhou célere para a estação dos caminhos-de-ferro onde adquiriu bilhete para Lisboa ou Porto e só quando entre si e a multidão se fecharam as portas do comboio é que respirou de alívio. Quem não se lembra dos primeiros guedelhudos que agrediram as normas há muito instituídas para os penteados masculinos? E das minissaias? E dos brincos em orelhas de rapazes? E das tatuagens?

    Em plena década de cinquenta, floresceu uma nata de homens bem-nascidos, catalogados como playboys, que levavam uma vida de fausto e diversão, namoravam atrizes, cantoras e outras divas do show-business, viajavam à volta do mundo, davam que falar, apareciam nos órgãos de comunicação e forneciam material às colunas sociais em plena expansão. No Brasil, onde eu, então, vivia, foi esse o tempo em que O Globo, fundado por Irineu Marinho se tornou o principal órgão da imprensa brasileira, núcleo dum grande império de mass-media que incluía também revistas, rádio e televisão. No jornal, Ibraim Sued, tornou-se o mais notado colunista social da época. Ser referido(a) na coluna do Ibraim Sued era a suprema aspiração das dondocas e dos playboys. A América do Sul foi alfobre desses espécimes, herdeiros de famílias riquíssimas em países onde a maioria das populações vivia na maior indigência. Estranhamente, as proezas de Porfírio Rubirosa, Mário (Mariozinho) de Oliveira, Otávio Guinle e muitos outros eram celebradas nessas colunas e seguidas com atenção por gente de todos os estratos sociais que lhes dispensavam a simpatia que, por norma, dedicamos aos meninos traquinas mesmo quando partem a loiça, riscam as paredes ou nos deixam embaraçados perante os nossos amigos. Mariozinho de Oliveira, filho do comendador português Zeferino de Oliveira, construtor de um império na indústria e no grande comércio, foi corredor de automóveis sem ter dado muito nas vistas do público. O que verdadeiramente o distinguiu foram os atropelos à boa ordem e ao respeito que é devido a todo o ser humano. Dele se contava que, certa madrugada de verão, depois de uma noite bem preenchida, banhou-se e, tal como veio ao mundo, subiu a uma das janelas da sua mansão na Zona Sul do Rio de Janeiro e, empunhando um saxofone, atroou os ares calmos, despertando os moradores da área, indiferente à multidão que se formou e às imprecações que dela partiam, saindo apenas quando achou que era chegada a hora de dormir, porque ninguém se atreveu a contrariá-lo nem a própria polícia. Era o tempo do “sabe com quem está falando?” que ricos e graduados utilizavam para saírem airosamente de situações embaraçosas face à autoridade ou para marcar a diferença em relação às pessoas ditas vulgares. Em certa época, dei apoio escolar a um rapaz pertencente a uma das famílias mais ricas e conhecidas desta área. Os netos do “patriarca” reuniam-se numa quinta dos arredores do Porto que confinava com a via pública e onde se divertiam a valer ainda que nem sempre do modo mais adequado. Certa vez, o João contou-me que um dos passatempos a que se dedicavam era atirar pedras miúdas para a estrada ocultos pelo muro da quinta. Nem sempre as coisas lhes corriam bem e um dia em que uma dessas pedras foi bater no vidro parabrisas dum táxi, o condutor tocou a campainha e não desistiu enquanto não vieram atendê-lo. Irritado, o homem exigiu determinada quantia para substituir o vidro danificado, caso contrário faria queixa na esquadra mais próxima. Posta a questão nesses termos, outro remédio não havia que não fosse satisfazer a exigência do taxista. Nesse ponto do relato, interpelei-o:

    - Então vocês não sabiam que essas coisas não se fazem?

    - Ó professor, os ricos têm o direito de ser excêntricos.

    Expliquei-lhe que a excentricidade tem limites. Qualquer atitude que possa prejudicar outras pessoas, não é admissível. Por serem ricos não têm o direito de faltar ao respeito a quem quer que seja.

    Se a extravagância dentro da lei pode tornar-se positiva como mediadora de mudança, a excentricidade baseia-se numa falsa convicção de superioridade que nunca deverá ser aceite.

    Por: Nuno Afonso

     

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