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    Arquivo: Edição de 24-12-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    Reconhecimento

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    Ao escrever qualquer tipo de apontamento em que cite alguém que objetivamente me marca e entra nos meus pedacinhos de escrita, moralmente sinto-me sempre na obrigação de dar conhecimento e pedir autorização ao(s) visado(s), dando a conhecer o contexto em que o faço, quer tenha nome ou não. Dificilmente equacionaria receber por escrever, na forma como o faço, pois seria como vender “pedacinhos de vidas” que estão espelhados em simples frases de gente que eu sei que se revê nelas. Isto veio a talhe de foice porque é difícil esquecer a emoção da menina da franja quando leu o texto em que tinha lá um pedacinho da sua história. Atónita disse-me: Que bonito!, nunca ninguém tinha escrito nada sobre mim. Quando eu chegar a casa vou ler à minha mãe ela vai ficar tão orgulhosa!». A forma como o disse foi como se achasse não valer a pena falar dela. Dizia-me também que eu podia usar a sua foto e eu expliquei-lhe porque não o faria, nem mesmo identificá-la com nome: tirava-lhe o sossego porque, na maioria dos casos, quando as pessoas se atrevem a sair do anonimato a que estão votadas muita coisa se altera, mesmo que digam que ficam felizes por nós e esta menina, que desde muito nova precisou aprender a ser Mulher, não teria arcaboiço para lidar com a deceção de ver rostos que, no imediato mudariam de feição.

    Escolhi este ponto de partida para desenvolver este apontamento porque normalmente a reação das pessoas a quem peço o favor e a honra de autorizarem a utilização dos seus nomes, dos seus rostos ou mesmo os que ficam anónimos quando o bom senso manda por motivos diversos, mas que permitem que eu “encripte” mensagens de registo e pedacinhos valiosos da suas vidas, acham que não vale a pena e ficam até surpreendidos por eu ver coisas que estão lá, dentro de cada um e à medida do seu sentimento. É que ao longo do tempo tenho ouvido às pessoas dizerem que fazem falta notícias positivas e isso tem que começar “por dentro” - tudo começa dentro de nós e só depois se reflete no nosso quotidiano, na nossa vivência e na nossa convivência que nos transforma em grupo, em sociedade. Ao escolher este tipo de orientação nos meus apontamentos, eu teria que ter começado por mim própria, e só depois poderia conquistar o respeito e a confiança para me deixarem escrever aquilo que eu vejo com o coração mas, também aqui, tenho que reconhecer que casos houve em que tive que “mexer” e suprimir alguns pedacinhos de algumas vidas - uma grande lição que aprendi: nem tudo se pode escrever com o coração e coisas há que têm que ficar assim porque há seres humanos que assentam os seus pilares baseados em certezas e seguranças que quase se tornam vício - a “imagem de marca”, de que não se abre mão e que convém a cada um não enfraquecer, ao deixar expor o seu lado sensível e humano.

    Desfolhando a pasta onde guardo os meus pedacinhos de escrita encontrei um denominador comum identificado em quase todos eles - a coragem e o tremendo respeito que me têm merecido as pessoas que se atrevem a ser alguma coisa, a sonhar com alguma coisa e a construírem pequenas e algumas coisas que as tornam desassossegadas, irreverentes, audaciosas, tenazes e resistentes, muitas vezes até à própria dor. Em desafios que todos nós gostamos de “nos meter” e que nos entusiasmam pelo grau de dificuldade elevado que encontramos, quer seja jogo de futebol, xadrez, escalada ou mesmo estar em frente a um televisor e ver a rodar os números de sorte ou azar, eu encontrei este que se tornou aliciante: aproveitar as oportunidades com que a vida me tem cruzado e encontrar o melhor de cada um, olhar para as dificuldades como um desafio e extrair-lhe a seiva que faz com que não morram as esperanças e o acreditar em nós e nos outros.

    É lógico que isto de nos pôr a viajar dentro de nós mesmos e levar-nos a encontrar emoções e sentimentos que a vida nos fez guardar a sete chaves e ao ponto de quase esquecermos que existem não será do interesse de muitos e seria mais lógico e até mais fácil ir-se atrás do pior, esmiuçar e retalhar até não sobrar nada e depois “lamber os beiços” e ir atrás de “nova vítima” – atitude que nos alimenta a sede de “fazer sangue”, o tal “olho por olho e dente por dente”, até ao momento em que a vida nos para, e depois olhamos para trás e só deixamos devastação por não criarmos nada, não aprendermos com os nossos erros e com os dos outros, não semearmos nada e nada termos para colher. Ao longo da minha vida fui percebendo que neste tipo de “jogo da vida” a concorrência já é tanta que o desafio não teria mesmo piada nenhuma e eu aproveitei para seguir o caminho que se identifica mais comigo e que me ajuda a mudar, corrigir e aprender tudo o que me for possível e sobre tudo o que me for possível.

    Refletia sobre isso enquanto passava por um prédio que conhecia e pensava como seria impossível esquecer os olhos de um senhor que lá morava e que com mais de 75 anos de idade, numa atitude elevada, me acolheu na sua casa, de porte nobre, igual a ele mesmo e à sua esposa. Tinha sido dono de uma empresa e as coisas tinham corrido mal ao ponto de ter que abrir insolvência pessoal. Quando o seu número fiscal mostrou irregularidade ele dizia-me com as lágrimas nos olhos: «Falhei, mas agora estou a cumprir». Homem corajoso, a quem pedi que não se sentisse mal e ninguém tinha o direito de o julgar - a sociedade já se tinha encarregue do “ajuste de contas”. Agora, deveria estar feliz e viver o tempo que lhe fosse permitido ao lado dos filhos e netos que iam chegar do estrangeiro para celebrarem com ele o Natal. Isto no ano passado. Quando me perguntam «é mesmo verdade aquilo que escreve?», só tenho uma resposta – cada frase, cada parágrafo e até às vezes cada palavra tem um rosto, um sentimento, um sonho ou um esperança mas, acima de tudo e o que está subjacente é o direito inexpugnável de “se ser”, com ou sem rosto, com ou sem nome.

    Foi Marie Curie que um dia disse: «Existe em todos nós um dom para algo e, custe o que custar, temos que encontrá-lo».

    Por: Glória Leitão

     

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