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    Arquivo: Edição de 07-12-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    Vidas em rodados de camião

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    «Se queres comer bem, para onde vires camionistas» – foi o conselho que recebemos de quem já percebia da “poda” quando pela primeira, vez em 1991, atravessei Portugal, Espanha e França para ir de encontro de familiares a amigos que vivem lá num cantinho do país de Moliére e a que chamam a região das “três fronteiras” – 2 100 Kms, sempre a rolar por estradas nacionais – porque se aproveitaria a viagem para conhecer tudo o que nos fosse permitido.

    Portuguesa, com a tradição do cafezinho, que ajuda a espevitar e afastar o sono certo é que foi dececionada que em Espanha recebi um café que tinha pedido e que percebi nunca seria como o da nossa terra, ainda mais que vinha cheio, em chávenas também diferentes, maiores. Esta deceção repetiu-se em França. Contudo, teimosa que sou, mais tarde, ao passar num sítio onde estavam muitos camiões estacionados lembrei-me que ali eu deveria ter ajuda porque seguramente encontrava algum português que poderia estar a tomar um “cimbalino”. Efetivamente o estabelecimento estava cheio de gente, motoristas na sua grande parte, mas nenhum português. Quando já desconsolada tentava explicar como queria o meu café, surge uma pessoa que em Francês, me diz: «Permita-me minha senhora, quando quiser um café assim peça “un petit café serré” – remédio santo porque a partir dali nunca mais esqueceria este termo.

    Com o tempo a vida cruzava-me com gente que abraçava a profissão de motorista de longo curso e partilhei algumas das suas realidades familiares: os que têm que ficar cá, cuidando de tudo em dobro, desempenhando o papel de pai e mãe – ainda mais que precisam de semear o amor pelos dois. Essa sim será a tarefa mais difícil de explicar a uma criança: o pai ou a mãe têm uma casa que anda em cima do rodado de um camião e que para além de transportarem tudo o que lhes fará falta para a sua viagem, por vezes quase interminável, a par com o lado duro desta profissão, levam no coração as pessoas da sua “casa de família”, a casa que ironicamente passa para segundo lugar por ser aquela onde moram menos tempo mas que, também por ironia será a que está no topo das suas prioridades porque alberga tudo o que têm de mais precioso nas suas vidas.

    Numa das viagens, que em anos seguintes voltei a repetir, lembro muitas vezes um final de dia em que foi preciso fazer-se uma paragem na procura de alojamento para passar a noite e quando abri a porta da receção de um hotel, olhei surpresa para a sala cheia de camionistas que não podiam seguir viagem – tinham sido apanhados por uma greve que os obrigou a parar em Espanha. Divididos por grupos conversavam como famílias, em idiomas diversificados mas via-se que todos se entendiam entre eles. Riam e estavam em franca confraternização e de uma forma tão calorosa que a vontade era ficar ali, no meio deles a dar duas de treta, ainda mais quando se estava tão longe de casa como era o meu caso. Também por diversas vezes precisei de parar junto a pequenos aglomerados de profissionais de volante que se colocavam estrategicamente junto às fronteiras e cozinhavam as suas refeições ao calor de um fogareiro. Sempre acompanhados com um cumprimento, um sorriso a que inúmeras vezes acrescentavam as palavras: «São servidos?». Certo, é que numa das vezes em que não se encontrou hotel para passar a noite e sem carrinha que permitisse que dormíssemos fechados procurou-se um parque de estacionamento onde estivessem camionistas estacionados a descansar porque assim, “estaríamos seguros”, conforme nos aconselharam pelo caminho.

    Passaram-se alguns anos depois de algumas peripécias dignas de registo mas hoje, em que o flagelo do desemprego não poupa praticamente ninguém, de qualquer profissão que se conheça, eu penso que compreendo quando um motorista de longo curso, desempregado, sonha em poder voltar a fazer-se à estrada e isto será porque além de ir atrás do seu ganha pão, vai também ao encontro da união de amigos que quase são como família porque passam pelas mesmas dificuldades, pelas mesmas privações e sentem de forma idêntica as alegrias e as tristezas mas, acima de tudo pensam em grupo, em equipa – sabem que poderão sempre contar uns com os outros. Escrevo esta reflexão antecipando a emoção de saber que acompanhada por amigos, vou poder estar num convívio de gente que gosta de ser assim e onde vou poder privar durante algum tempo com o sentir de pessoas corajosas que precisaram, souberam e conseguem manter-se a viver em cima dos rodados de um camião!

    Por: Glória Leitão

     

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