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    Arquivo: Edição de 22-05-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    CRÓNICAS DE LISBOA

    O jardim do meu bairro

    Foto SM
    Foto SM
    No início da segunda metade do século passado, emigrar para a capital, deixando as aldeias onde nascemos, e nas quais a pobreza era comum à maioria das famílias e com grandes prole, era uma forma de luta pela sobrevivência. O comboio, com a sua rede de linhas e ramais, parecendo um conjunto de veias dum corpo chamado Portugal, cobria grande parte do País e, por isso, era o rei dos transportes públicos. A mim, trouxe-me até Lisboa e aqui vivo há quase cinquenta anos.

    Assisti a um “modus vivendi” dos lisboetas, população composta por milhares de “provincianos” que invadiram, como eu, a cidade, mas mantendo ligações à “santa terrinha”, que se visitava de comboio, se o dinheiro chegasse. Era uma forma de vida simples, que o dinheiro e as condições de vida não davam para luxos, estes de pouca oferta e acessíveis apenas a uma elite. Esse período foi muito bem retratado pela série “Conta-me como foi”, que passou, há tempos, na televisão pública. Apesar da ditadura política e da “ditadura dos costumes”, as transformações socioeconómicas, na década de sessenta e parte da seguinte, foram ocorrendo (a guerra colonial e o forte fluxo da emigração para a Europa, exerceram significativas influências) e o 25 de Abril de 1974 significou o “rebentamento dos diques” que sustinham algumas amarras, pelo que, de facto, aquele acontecimento foi um marco das profundas mudanças na sociedade portuguesa.

    Porque hoje é domingo, com um sol de verão prematuro, e ao atravessar o jardim do meu bairro, no qual a Junta de Freguesia investiu para que ele pudesse ser um local aprazível e funcional, o meu pensamento recuou várias décadas e transportou-me para uma tarde domingueira e soalheira da década de sessenta, na capital. Os jardins, parques e ruas enchiam-se de gente para gozarem uma tarde de descanso em família ou de casais de namorados, quase sempre acompanhados por um familiar, porque o namoro não era como o de hoje! Para ali, deslocavam-se a pé, de carro elétrico (havia muitas carreiras deste tipo de transporte na cidade, mas hoje só restam três) ou de autocarro, e o farnel e as mantas faziam parte da bagagem. Automóveis? Isso era um luxo duma minoria.

    Depois, com o 25 de Abril, todos “enriquecemos” num repente, como num golpe de magia, a que os dinheiros vindos da UE, o acesso ao crédito bancário e a adesão ao euro, foram permitindo formas de vida de novos ricos. Assim, aquelas práticas singelas foram sendo substituídas por outras de maior “status”. O automóvel e os combustíveis, cada vez acessíveis a mais portugueses, passaram a permitir deslocações de encher o ego, por exemplo levar a família a almoçar e a passear à praia e aos arredores. A ida à “santa terrinha” passou também a ser efetuada de carro, mesmo que em segunda mão, porque a procura de carros novos excedia largamente a oferta, face à contingentação nas importações.

    Os comportamentos sociológicos e urbanísticos, foram-se alterando à medida que a cidade crescia, para os arredores e o povo continuava a “enriquecer”, pelo que os parques e jardins passaram a ser locais fantasmas e abandonados. Perderam vida, porque os citadinos passaram a ter outras posses e outras ofertas (centros comerciais, autoestradas e scut's, cujos custos pesam agora nos nossos impostos, que permitiam deslocações rápidas, etc.). As deslocações turísticas, internas e externas, massificaram-se e democratizaram-se e a recorrência ao crédito, fazia dum pobre um rico! Depois se veria, mas, entretanto, os hábitos e os costumes, mudaram radicalmente.

    A vivermos assim, um dia o “céu desabaria” sobre todos nós, pelo que esta crise em que mergulhámos, uns mais do que outros, está a levar muita gente a (ter que) mudar de vida, “regressando” a valores e comportamentos de outrora, isto é, no tempo em que não éramos ricos. Por isso, nesta tarde domingueira de maio o jardim do meu bairro estava cheio de vida e também dei comigo a comparar esse cenário com outras cidades da Europa nas quais há um culto pelos parques e jardins. As crises costumam ser violentas nas mudanças que nos obrigam a tomar/aceitar, pelo que esta crise pode ser uma revolução nos nossos hábitos e atitudes, embora alguns ainda não o tenham entendido. Ou será que, passada esta tempestade, regressaremos aos exageros consumistas do passado recente? Isso dependerá, essencialmente, de cada um de nós, mas o marketing e as tentações poderão vencer-nos e conduzir-nos para os prazeres efémeros.

    Por: Serafim Marques

     

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