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    Arquivo: Edição de 30-04-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Em tempos de Abril

    É histórico associar o mês de abril a uma revolução, colorida pelo vermelho dos cravos. Em 1974 quando isso aconteceu eu tinha 14 anos e se a exemplo de muitos portugueses fiquei zonza sem saber o que se estava a passar no dia 25, em que fomos dispensados das aulas e mandados para casa e nem nos atrevemos a vir para a rua brincar, nos dias seguintes percebi rapidamente que se falava de liberdade e aí também entendi finalmente o que nos queria dizer a minha professora da 4ª Classe, e isso passou-se no ano letivo de 1968/1969.

    Esta professora, que teria pouco mais de 20 anos, com corte de cabelo “à rapaz”, marcou-me sempre, porque quando a recebemos como professora da 4ª Classe terminou também o tempo das “reguadas”, com as palmatoadas que eram distribuídas pelos alunos mais desatentos e por vezes mais faladores. Aqui os mais afortunados e que tinham sorte em escapar a estes castigos eram mesmo os que pertenciam a famílias mais conhecidas e abastadas da localidade – era implícita a ideia de que ter-se mais dinheiro era sinónimo de boa educação... e por aí fora.

    Levava-nos recortes de jornais com notícias diferentes e lembro-me de falar do assalto ao paquete Santa Maria, que ocorreu em janeiro de 1961 e que, liderada pelo capitão Henrique Galvão, teve como principal objetivo contestar e provocar o Governo de Oliveira Salazar.

    Lembro-me ainda da quadra de um canção que nos ensinou:

    Tira o chapéu milionário,

    Vai um enterro a passar,

    É a filha de um operário

    Que morreu a trabalhar

    Foto ARQUIVO
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    e que era cantada com a entoação da música de António Macedo, “Canta, Canta, Amigo Canta”. Na altura dei-lhe um valor tremendo, e para não a esquecer fui a cantá-la no caminho para casa. Contudo, quando eu a cantei em casa lembro-me de o meu pai ficar em pânico e eu tive que lhe prometer que não a voltaria a cantar e foi só depois de Abril de 1974 que percebi que poderia fazê-lo sem qualquer tipo de problema, pensava eu.

    Em 1977 começava a trabalhar numa grande empresa metalúrgica que tinha constituídas as duas grandes forças representativas dos trabalhadores: uma Comissão Sindical e uma Comissão de Trabalhadores e se o conselho que recebi quando fui admitida foi não falar de política, nem dar a conhecer qualquer tendência nesse sentido, lembro-me de ter ficado aterrada quando soube que estas duas forças se juntaram a pedido dos trabalhadores para paralisarem a fábrica caso eu fosse mandada embora como o pretendiam fazer no final do meu contrato de trabalho que terminava ao fim de seis meses – iriam pensar que eu era “política” e pertencia aos “vermelhos”.

    Efetivamente a união de todos fez com que eu ficasse efetiva na empresa e para isso nunca foi preciso eu dizer se tinha ou não uma definição política – eu ficava porque era eu, e os que lutaram por isso fizeram-no porque eram excelentes seres humanos, colegas que ficaram amigos e que instalei num pedacinho do meu coração, para sempre, porque acima de tudo sempre fui respeitada, sempre fui aceite e nunca foi por estar abrigada na cor de nenhum partido.

    Colaboradora dos Recursos Humanos, lembro-me de ser mandada para os plenários inteirar-me dos assuntos relevantes que lá eram levantados e quando me atrasava os meus colegas que integravam esses órgãos representativos dos trabalhadores paravam e diziam-me: Estás atrasada, não podíamos começar sem estares aqui!, e ríamo-nos todos e nunca me fizeram sentir mal por ter que estar a jogar num “campo diferente”, mesmo quando precisava de “furar” o piquete de greve que se instalava à porta da fábrica em alturas mais quentes de reivindicações e em que abriam alas à minha passagem e diziam “nós compreendemos que esta menina tem que entrar”.

    À parte de alguns episódios marcantes da minha passagem pela vida hão-de estar ainda vivos na memória de muita gente os avanços e recuos da democracia que se instalou no nosso país e os encantos e os desencantos de todo este processo, independentemente das forças políticas que nos foram governando e da penalização que todos sofremos por tentativas/erros na adoção de medidas que se mostraram ajustadas, ou não, à nossa realidade.

    Apesar de ser uma pessoa atenta ao que se passa na sociedade, e gostar de ouvir programas que permitam a intervenção de pessoas de pensamentos diferentes, nunca me atrevi a pertencer ao mundo da política, porque sinto-o demasiado complexo para mim e é uma profissão que eu penso não teria capacidade para abraçar porque os resultados não são imediatos e, como em muitas coisas, nem sempre o que parece é, conforme pude verificar por situações que me colocaram muitas vezes nos dois lados da “barricada”.

    Não me atrevendo nesses meandros, respeito contudo quem o faz por gosto e quem o sabe fazer. Aprendi a confiar e a entender as diferenças e deve ser por isso que acho que o mundo é coloridamente bonito: de flores, de pessoas, de pensamentos, de crenças, de ideologias e de formas de estar na vida.

    Tendo vivido em situações políticas diferentes decidi que gosto de viver num país livre e democrático mesmo se, por tendência natural, todos nós gostemos de puxar a brasa para a nossa sardinha e às vezes nos aborreçamos porque os outros não pensam como nós. Mas eu fixei uma frase escrita por Tolstoi: «Se tiveres a sensação de que não és livre, procura a razão dentro de ti mesmo».

    É que às vezes também somos nós próprios que nos amordaçamos e nos encolhemos na nossa própria sombra ou na sombra de alguém que nos quer impor um padrão de vida, uma filosofia ou uma orientação, e aqui, o único ato livre, que nos permite ser quem somos e escolher o que nos faz sentido é mesmo o ato de escolher ao Votar!

    Do grupo de experiências menos boas porque passei, uma delas eu decididamente não quero: ter que dizer aos meus filhos ou netos que não podem cantar uma canção, ditar um pensamento ou partilhar uma reflexão e isto muito para lá dos tempos de Abril e da herança que nos foi deixada por um punhado de homens que sonharam com a liberdade e a democracia por eles e por nós, que vivemos num país multicor onde penso que a única cor que não muda mesmo é a do céu e a do mar.

    Por: Glória Leitão

     

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