Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 30-05-2011

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Filho de sua mãe

    Não vou contar nada de depreciativo que, em linguagem popular, pode conter o filho da mãe, pelo contrário, desejo expressar o que de mais belo e humano existe nas mães e nos filhos e, como tradição nossa, se diga: a palavra Mãe é a maior que o Mundo tem!

    No concelho de Beja, num Monte alentejano, nasceu fora de tempo o primeiro descendente do Abegão. Já tinha perdido a esperança da mulher vir a engravidar, mas desconhecia que, no final da vida reprodutiva, surgem hipóteses tardias de nascimentos. Serão devidos à sobrevivência da espécie humana?

    Assim, um bebé de nome Maria das Dores, um pouco enfezado, veio ao mundo para a felicidade dos pais e alegria do Monte. Claro, logo que a mãe criou forças, e pôde caminhar, foi à ermida da Senhora da Graça agradecer o “milagre” do nascimento. Nem o uso de fraca tipóia, nem a dispensa do Sr. Prior a demoveram da ida ou da promessa a cumprir. A criança, bem enrolada numa manta, seguiu a seu lado na carroça, por caminhos tortuosos, entre solos barrentos de pousio, ou por trigais a despontarem de verde.

    A Maria das Dores cresceu, ficou forte e saudável e bonita, mas cedo ficou órfã. Quando frequentava a 3ª Classe, na escola de Santiago, a morte súbita da sua querida mãe, transmitida pela professora Teresa, ia-a matando. Como “quem tem mãe tem tudo”, perdeu a alegria de viver. Mais: ainda andava no aliviar do luto, quando ocorreu a morte do pai, ferido de morte, ao cair da mula em solo pedregoso, quando ia colher as primeiras favas do ano na horta.

    A D. Maria dos Prazeres, proprietária do Monte, onde viveram e trabalharam os pais, demoveu o marido, juiz conselheiro em Lisboa, a proteger a “afilhada”, apesar de não ter cumprido a promessa de verter a água benta na cabeça da neófita, nascida na sua propriedade. E, como patrão, determinou:

    – A rapariga vai para a costura. Não precisa de continuar a estudar. Ler e escrever já é muito bom!

    Assim, a D. Prazeres falou com as Pintas (costureiras) de Santiago, e conseguiu o lugar de aprendiz para a Maria das Dores, e a ficar interna, logo que metesse novo feitor.

    Por não haver bem que sempre dure, aos treze anos, passou a residir no Monte e a palmilhar o caminho para a costura, munida da taleiga de fraca merenda. Quando tinha a oferta de uma sopa, dada pelas Pintas, ou tinha uns patacos, dados pelas freguesas, comprava guloseimas. Agradecia a Deus e rezava pela alma da mãe.

    Os substitutos dos pais, na herdade, malteses de má raça, fizeram da órfã criada de dia e noite, e de todos os serviços. Só no uso da agulha tinha tempo de libertação. A alimentação era escassa, tanto dentro como fora do Monte. O farnel, constituído por pão, carne gorda, fruta (no tempo dela) e fava rica, mal enchia o fundo do estômago, durante os dias de costura.

    Poucos anos passados, os assalariados agrícolas, que a observavam nas idas e vindas para Santiago, começaram a mandar-lhe chalaças, mesmo quando, cabisbaixa, os saudava de bom dia.

    Certa vez, o maioral, Zé da Aida, saiu em sua defesa:

    – Deixem a cachopa em paz! Vai trabalhar para as Pintas, do mesmo modo que nós o fazemos para o Sr. Serafim Machado. Olhem bem!, já não tem pai nem mãe...

    No dia da Espiga toda a gente vai fazer festa no campo. Há colheita de flores, merendas, ranchos e grupos musicais, e discos a debitar músicas por altifalantes. O Zé da Aida, encarregado do “piquê”, não dançava, e apenas comia umas buchas das lautas merendas dos amigos e familiares, colocadas em toalhas à volta do acampamento e ao lado do trigal. Só a Maria das Dores foi ao seu encontro, levando-lhe um prato com borrego assado, pão e um copo com a famosa água-pé de Serpa. O Zé, solteirão inveterado, ficou desvanecido da amabilidade e delicadeza de menina tão linda e prendada... O rastilho do dia da espiga pegou em amor! Antes das ceifas, estavam casados – grande boda, com padre, patrões, flores e... , até os animais dos currais tiveram ração melhorada!

    O casal passou a residir e a tomar conta de outro Monte do Juiz Conselheiro (agora, mesmo padrinho de casamento), nos arredores de Vila Verde, continuando a Maria das Dores a ganhar os dias a costurar.

    O MENINO

    foto
    Quando as cepas são de boa qualidade, mesmo no Alentejo de pouco vinho, têm que dar boas uvas. Marido e mulher em comunhão, bons trabalhadores e complementares, no fundo bons corações e, não tinha passado um ano da união, nasceu o filho – Rui Manuel.

    Como criar o menino? Enquanto pequenito, a mãe deixou a costura. Mas, tempos de fome varreram o Alentejo, apenas por não ter chovido o necessário (anos de seca), obrigando-a a ir ganhar os dias. Os apertos passados foram tão fortes que tiveram de pedir a um velhote, protegido pelo casal, para tomar conta do pequerrucho, enquanto ia trabalhar fora. Em tempo de crise havia muita roupa para remendar...

    Cedo o Rui aprendeu o tipo de vida campestre. Instalações, caminhos, palheiros, animais domésticos, passarada e bicharada do mato deixaram de ter segredos. Andar aos ninhos e vê-los, nas várias fases de construção, era a sua banda desenhada (!), que incluía borboletas, lagartixas, de caudas cortadas e a saltar, grilos e cigarras a cantarem, nas terras e vimeiros da ribeira. A sinfonia dos ralos, pela noitinha, era a voz dos fados da Amália, cantados por um ceguinho, na feira de Santiago. Mas, ficava triste quando os filhotes dos passarinhos não voltavam ao ninho, que viu fazer e donde cresceram dos ovos até às crias. Nunca teve coragem de meter um pássaro numa gaiola. «Era um lutador pela liberdade!», como o Zé da Aida dizia do filho aos amigos. Os arranhões, a ingestão de azedas, amoras, rebentos de roseira, e outras ervas aromáticas, causaram chagas e diarreias, mas o uso das mezinhas do tutor idoso faziam milagres!

    Aos seis anos teve a oferta de um cão rafeiro, de estirpe pequena e de nome Atrevido. Com a gata amarela, meia vadia, e amiga(!) do novo canídeo, passou a calcorrear os campos, vendo o cão a afugentar láparos e a gata a matar e comer passarinhos imberbes, na vez de ratos! O Atrevido dava preocupações: atirava-se à luta aos cães grandes (precisava de um varapau para o defender); corria atrás de alvos em movimento, principalmente carroças e carros, nos caminhos e na estrada. Quando ladrou a uma caravana de ciganos, foi corrido à pedrada, e voltou ao dono em três patas e uma rachada.

    Graças ao engenho do pai a pata foi encanada e ligada, e amparada ao dorso com uma soga de boi. Curou e voltou a correr e a saltar, com um senão: fugia a sete pés do dono, quando se aproximava uma carroça ou automóvel (ao atacar um pneu de automóvel, em movimento, tinha apanhado forte pancada ). Se o principal divertimento, na ausência dos pais, era ir à estrada ver passar os carros e a camioneta da carreira, e observar os trabalhos do cantoneiro Henrique, compondo as valetas, as bermas e o macadame, o cão, ao chegar perto do cantoneiro, especava como se farejasse perdiz (medo dos carros), e pronto, deixava a companhia do dono, e o passeio interrompido...

    E o tempo de ir para a Escola?! “Nunca mais chega”, pensava o Rui ansioso. Durante a espera ia aprendendo a conhecer as letras, os números e pequenos problemas de cálculo mental, puxado pela mãe, em qualquer altura e sítio e, principalmente, nos domingos e dias santos. O pai, mais idoso, passava o tempo livre na taberna da Vila, a jogar cartas ou confraternizar com os amigos.

    Para conhecer os números e as letras, nunca esqueceu a voz da mãe:

    – Olha que o sete (7) tem o feitio do gancho da candeia!

    – Dizer efe (f) é como os gatos arreliados fazem: fff... pfff... fff... pfff... fff ...

    E as imagens de encher as bochechas de ar, para imitar os gatos?! Parecia tocar trombone! Quando o Professor Antunes o recebeu, e se apercebeu que já sabia contar até cem, e conhecia as letras, deu-lhe logo a incumbência: «Vais ensinar o a,e,i,o,u aos iniciados e atrasados» – antes de ter mestre foi professor!

    Passou a palmilhar cerca de uma légua para ir à escola, acompanhado pela mãe, quando ia ganhar os dias na costura. Nas caminhadas, decorou as estórias mais lindas da sua vida, ouvidas e repetidas na voz maviosa da amada mãe. Mesmo os contos maldosos tinham muito humor e a maldade mal se “via”.

    No dia que as Pintas o convidaram para almoçar, ficou ufano. Sentado, frente ao prato, talher e copo, e vendo a imagem, no espelho do louceiro, pareceu-lhe ver outro rapaz a sorrir!

    Chegou o grande dia – exame da 4ª Classe – na Escola Principal da Vila, perante o júri do director escolar e mais dois professores. Ficou distinto. Foi uma festa para os pais, familiares e amigos conhecidos e desconhecidos. O Sr. Prior, sabendo das suas capacidades, desde o tempo da catequese, também o foi abraçar, lembrando:

    – Tens que continuar a estudar. Vais ter uma vaga no Seminário.

    O Sr. Conselheiro, nada dado aos padres, sabendo da possível ida para o Seminário, sentenciou:

    – O rapaz vai para o liceu de Beja. Padres há muitos!

    O nosso herói ficou contente. Continuar a estudar era um sonho, mas a separação da família seria o inferno. O pai queria e não queria: quem iria tirar o leite à cabra, ir à agua fresca, tratar da burra, substituir o pastor dos porcos?; e, mais do que tudo, a falta de companhia, agora que a força das pernas recusava as idas à taberna.

    – Filho é sempre filho, longe ou perto, compadre Zé – dizia o Domingos da Lúcia, bebendo mais uma golada à saúde de um futuro doutor.

    A ida para Beja foi dramática. Na despedida as lágrimas dos pais conseguiram abafar-lhe os soluços. O pior foi ver-se confinado nas paredes do quarto, nas águas furtadas da casa de acolhimento. Gritou baixinho, mas gritou... Só, o abrir o postigo da janela e encarar os quintais, com a visão de um diospireiro, carregado de frutos e sem folhas, o conseguiu tranquilizar e fazer pensar:

    – Era um privilegiado. Dos colegas, aprovados no exame da 4ª Classe, foi o único a poder frequentar o liceu de Beja.

    Nas primeiras aulas de “mosca morta” passou a moscardo, e cedo deixou de ser o bombo da festa dos “arreguilas” da cidade. Seguiu o conselho do seu melhor professor:

    – Estuda e serás mestre.

    Por: Gil Monteiro

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].