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    Arquivo: Edição de 30-01-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Semente em chão infértil

    O tio (I)Nocêncio contrariava a unanimidade religiosa do lugar. Sendo a Eucaristia dominical o signo exterior mais afirmativo e identificador dentre o ritual católico, pela ausência continuada, tal pessoa auto-excluía-se da comunidade dos crentes, o que não era de somenos, numa época em que a Igreja representava tanto na vida das pessoas. Era do altar que vinham as palavras mais esclarecidas quer sobre a Fé, quer mesmo acerca de normas concernentes à vida quotidiana dos aldeãos. Poucos sabiam ler, ainda que tivessem uma cultura muito própria e uma forma de estar específica, os contactos com a urbe eram raros e nada acrescentavam ao saber tradicional, havia uma demarcação nítida entre pessoas e modos de estar da aldeia ou da cidade, os que se deslocavam de uma para a outra faziam-no para mercar o açúcar, o arroz, o bacalhau que não produziam, vender os produtos que podiam dispensar e aplicar o dinheiro naquilo que lhes fosse útil, ou para satisfazer as suas obrigações com o Estado. Contactos privilegiados estabeleciam-se com os moradores de povoações vizinhas porque tudo o que fosse além das precisões urgentes era ninharia, coisa sem préstimo. Mas o que o senhor padre dizia era digno de crédito absoluto como se o próprio Criador falasse pela sua boca.

    O tio Nocêncio provinha de uma família de boa aceitação geral e de medianas posses materiais. Como todos, fora levado à pia baptismal nos primeiros tempos de vida, frequentara a catequese e fizera a primeira comunhão. Casou segundo os cânones da Santa Madre Igreja e acabaria por nela repousar quando os seus dias chegassem ao termo. Abstinha--se de a combater talvez por lhe faltarem argumentos ou por reconhecer a sua fraqueza em luta tão desigual. Ninguém parecia saber o que motivara aquela ruptura nem achava seu dever indeclinável tentar reconduzi-lo ao bom caminho, escudando-se no argumento de que não havia tempo para filosofias quando a vida no campo era tão exigente mas, acima de tudo, porque também não saberiam contradizer o que nele consideravam digno de censura.

    Emigrara para a França pelos anos vinte do século passado, fora incluído no esforço de reconstrução do país saído da 1ª Grande Guerra depauperado em milhões de vidas, umas ceifadas outras truncadas. Não obstante, a sociedade francesa apresentava um grau de desenvolvimento tecnológico e cultural nada comparável com o deste pequeno recanto. Aquele homem rude, analfabeto, deixou-se deslumbrar, de imediato, por muitas coisas que nunca antes vira e daí também para as que nunca ouvira. O operariado francês possuía uma tradição anticlerical, um racionalismo intolerante herdado da Revolução Industrial, iniciada em meados do século XVIII, da Comuna de Paris em 1871 e inspirada num marxismo, em muitos casos arrepelado, isto é, adoptado nos seus aspectos superficiais, sem grande reflexão quanto ao corpus científico que pretenderam conferir-lhe Marx e Engels. À semelhança de muitos outros concidadãos, sofria de genética falta de autoestima que o levava a considerar o que era estrangeiro superior aos pátrios valores tradicionais, confundindo cultura com avanços técnicos e científicos que a França e outros países europeus ostentavam, enquanto em Portugal nada de novo acontecia.

    Regressou da estranja financeiramente tão pobre como partira. Retomou o aconchego do lar paterno e o amanho das terras. A França ficara longe dos seus horizontes mas constituía uma espécie de trunfo na vivência quotidiana, ter feito parte duma sociedade tão mais evoluída do que a nossa tinha para ele um enorme significado. À morte dos pais ficou com umas leiras, coisa de pequena monta na distribuição por meia dúzia de herdeiros, casou com alguém que pouco acrescentou aos bens familiares e procriou como estabelece a lei natural. Quanto a outras determinações, no domínio da religião, por exemplo, entendeu trilhar um caminho diferente do que tinham seguido os seus maiores. Os vizinhos comentavam mas abstinham-se de intervir como, mais acima, ficou claro. Até os sucessivos párocos que ali exerceram o seu múnus foram incapazes de resgatar aquela alma fosse por inacção ou por omissão.

    Não possuía fazenda que sustentasse uma junta de vacas. Cultivava o que era seu empunhando ganchas ou enxada e valendo-se da ajuda de vizinhos em trabalhos que exigissem arado para melhor trabalhar a terra ou carro para transporte do que ela lhe dava e da lenha indispensável para alimentar o fogo doméstico. De resto, a mulher e as filhas cuidavam de galinhas e coelhos e do porquinho que garantia refeições um pouco mais suculentas, pelo menos em parte do ano. Aos domingos, instalava-se nos locais de convívio e ali ficava, observando o vaivém das pessoas sem mostrar grande apetência pela conversa mas, se alguém lhe dirigisse a palavra, mantinha o diálogo enquanto lhe conviesse. Se o interlocutor punha alguma questão incómoda ou que suscitava a sua discordância, saía-se, invariavelmente, com esta, numa voz pausada e cheia de autoridade:

    – Cala-te, home, tu nem sabes o que é uma roldana!

    De início, ficaram surpreendidos a julgar que o referente de tão estranho vocábulo deveria ser algo de grande importância que tornava aquele homem digno de admiração. Ninguém ousava perguntar-lhe que bicho seria aquele a merecer tal destaque e se, acaso, o tivessem feito, esbarravam num mutismo obstinado. Porém, tantas vezes usou o estribilho que deixou de merecer interesse, como quem diz: “se até hoje vivemos sem a tal roldana, podemos muito bem continuar assim. Ele que vá para o diabo mais a sua roldana”. E desandavam em busca de melhor companhia. O dito passou ao baú das curiosidades mesmo depois que o povo tomou conhecimento do que, para o tio Nocêncio, constituía motivo de orgulho.

    Ora, o tio Costento (Constantino) tinha umas fieiras de cepas a que dava o pomposo nome de vinha na encosta norte do rio, o sítio mais exposto aos raios benfazejos do sol. Para lá se deslocava com frequência de sacha ao ombro e mão esquerda a segurar a arreata da burra e ali passava horas esquecidas a cavar, a escavar, a podar, a enxertar, a limpar… Tirava a cabeçada à jumenta que, naturalmente, pastava a erva seca em torno, pachorrenta, enquanto o dono dedicava toda a sua atenção e carinho àqueles arbustos preciosos que lhe forneceriam a pinga singela para acompanhar, com regra, as refeições, ao longo do ano. Tão entretido andava que não deu conta de que o animal desaparecera do seu campo de visão. A certa altura, quis certificar-se do seu paradeiro e, não o enxergando, largou tudo e foi à sua procura. Encontrou-o no fundo de um fojo, meio oculto por ervas altas e silvas, para onde escorregara devido à inclinação do terreno. Impossível tirar a burra dali sem ajuda de outros vizinhos. Procurou-os em toda a área, conseguindo encontrar três ou quatro que prontamente acorreram ao chamado. Não havia corda e alguém teve que ir à povoação buscar uma bem grande pois seria necessário atar a burra com laços à frente e atrás para conseguir retirá-la sem lhe causar dano. Apesar desses cuidados e de outros homens terem chegado entretanto, a acrescentar força à dos que já ali se encontravam, as tentativas foram em vão.

    O tio Costento teve que meter pés ao caminho e dirigir-se à cidade, esperando que lá alguém pudesse socorrê-lo. Duas horas para lá, outras tantas no regresso, só para o fim da tarde estaria de volta. Não havia outro remédio nem mais tempo a perder. Foi directo ao estabelecimento de materiais de construção e ferragens do senhor Domingos Lopes. Relatou o seu drama, que foi ouvido com atenção. O responsável, homem muito experiente, ditou esta sentença:

    - A única solução é a roldana. No sítio onde se encontra o animal entra uma camioneta?

    – Não senhor – respondeu o tio Costento –, os caminhos são estreitos e o terreno é muito inclinado.

    – Está bem. A camioneta vai até à aldeia e depois leva--se a máquina num carro de bois. O importante é salvar--lhe o animal. Vamos lá!

    Não obstante as más condições do caminho, foi possível conduzir a camioneta até à povoação e dali transportar o engenho até ao local. Os conhecimentos técnicos do técnico, associados à força dos robustos homens do campo, – quase todos os homens válidos do povo quiseram ajudar – resultaram na salvação do animal sem danos e no fim da aflição do tio Costento.

    Nesse dia, terminou o mistério da roldana e a prosápia do tio Nocêncio, que nunca mais pôde lançar mão desse recurso.

    Por: Nuno Afonso

     

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