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    Arquivo: Edição de 10-12-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Ciência e Fé: campos e limites

    Nos dias que vivemos é quase tão difícil aceitar, incondicionalmente, a verdade científica como o dogmatismo e a estrutura temporal do catolicismo. Tudo é passível de contestação, quer por gente credenciada, quer por diletantes em roda de amigos. No primeiro caso, escreve-se *; no segundo não passa de ruído ainda que preencha espaço nos media e impressione pela convicção com que é transmitido. É condição essencial para denegar teorias e princípios consagrados que os contestatários possuam estatuto e respeitabilidade científica ou religiosa consoante a natureza da matéria em análise. «E aqui estás tu a meter a tua foice em seara alheia», dirão os que me lerem. A explicação é fácil, transparente: eu apenas constato situações que são por demais conhecidas e emito o meu ponto de vista não quanto à substância das questões mas relativamente à forma como elas são entendidas e/ou tratadas. É verdade que não sou cientista nem teólogo mas, na qualidade de cidadão amante da cultura e fiel no sentido religioso do termo, admiro os esforços desenvolvidos por homens e por mulheres que se dedicam ao avanço do conhecimento humano e creio na religião que os meus pais me transmitiram.

    O cientista português António Damásio, radicado nos Estados Unidos e reconhecidamente uma das maiores autoridades na investigação neurológica, pôs em causa a teoria de Descartes acerca das relações entre a emoção e a razão que têm feito o seu caminho há quatro séculos, e chamou à sua obra nada mais nada menos do que “O Erro de Descartes”. Uma vez que a sua intenção não era um confronto com o grande filósofo e matemático do século XVII mas o prosseguimento das suas pesquisas à luz dos novos dados e meios técnicos de que a ciência moderna dispõe, continua a publicar trabalhos em revistas científicas e a escrever livros onde vai dando a conhecer os frutos da sua actividade. Outro homem da ciência, também português, João Magueijo, integrante do grupo de Física Teórica do Imperial College em Londres, autor da VSL (Velocidade Variável da Luz) veio questionar a premissa mais básica por trás da Teoria da Relatividade de Einstein, a de que “a velocidade da luz no vácuo é sempre constante”. O seu labor científico conferiu-lhe a possibilidade de abalar um dos pilares da Física ao declarar que nem sempre assim aconteceu. Ora, o caminho da Ciência tem inúmeros escolhos que urge identificar e resolver para seguir adiante. Magueijo verificou que a sua teoria não explicava tudo, sobretudo «as irregularidades iniciais do Universo em conjunção com o problema do horizonte. Susteve a sua VSL para se concentrar nas ondas de som e criou uma teoria que irá competir com a Inflação Cósmica. Curiosa a ideia de que a velocidade do som já foi maior no passado e pode até ter sido superior à velocidade da luz», assim pode ler-se na Wikipédia, a enciclopédia livre. Aguardam-se, pois, novos desenvolvimentos, mesmo porque este homem da ciência tem apenas quarenta e três anos e desenvolve os seus estudos num dos mais reputados centros de investigação mundiais.

    O Modelo de Percepção de Descartes - Imagem da Revista da Universidade de Berna
    O Modelo de Percepção de Descartes - Imagem da Revista da Universidade de Berna
    No que diz respeito à religião, é preciso evitar que se confunda a árvore com a floresta: a doutrina que Jesus trouxe ao mundo, alicerçada no mandamento do Amor, não pode ser niilizada por erros graves da instituição religiosa ao longo dos tempos, incluindo os que estamos a viver. Justificar a descrença sob o pretexto dos crimes cometidos por católicos ou pela hierarquia eclesiástica não é intelectualmente honesto. Somos homens, eles são homens, logo, sujeitos ao erro. Como foi declarado no Encontro de Cuernavaca (México), em 1954, o corpus doutrinal do catolicismo é sagrado e inapagável, enquanto a Igreja, como instituição, padece das grandezas e das misérias que fazem parte da natureza humana, deve penitenciar-se pelas suas falhas e tudo fazer para que essas ou outras não voltem a ter lugar. Convém, no entanto, lembrar a obra assistencial, cultural e espiritual desenvolvida pela Igreja ou sob o seu impulso nos dois milénios que nos separam do nascimento de Cristo. O mundo não seria o que é actualmente sem a contribuição de homens da Igreja ou em seu nome nos vários sectores de actividade. Os valores por que se regem as sociedades ocidentais estão alicerçados no Cristianismo.

    Ciência e Religião têm campos distintos; àquela incumbe desenvolver o conhecimento humano à luz da razão, esta encontra a sua justificação pela Fé. A ciência ocupa-se da materialidade, a religião remete para a transcendência. Algumas vezes se encontram, outras divergem. Acreditar no divino, por princípio, não atenta contra a liberdade de investigar, questionar e teorizar ainda que, frequentemente, isso tenha acontecido; a pesquisa acerca do mundo (do Universo) e da vida busca também explicações racionais para problemas que foram, desde sempre, questões de Fé e preocupação dos seres humanos: a existência de Deus, a alma humana, a origem da vida, existência de outra vida para além da morte. Há homens de cultura que são cientistas e religiosos sem que daí advenha qualquer conflito para si mesmos ou para outros. Há também cientistas ateus, com certeza. Um dos maiores cientistas da actualidade, o cosmólogo Stephen Hawking, tem manifestado opiniões divergentes acerca da existência de um Deus criador do Universo. Numa das suas obras, diz: «O Universo é governado pelas leis da ciência. As leis podem ter sido criadas por Deus mas Deus não intervém para quebrar essas leis». No livro “Uma breve História do Tempo” cita: «Tanto quanto o universo teve um princípio, nós poderíamos supor que teve um Criador. No entanto, se nós descobrirmos uma teoria completa/…/então nós conheceremos a mente de Deus». No seu livro mais recente “The Grand design”, publicado pouco antes da visita do Papa Bento XVI à Grã-Bretanha, contradiz as suas anteriores declarações sobre a ideia de um criador e sugere que: «Deus não tem mais lugar nas teorias sobre a criação do Universo, devido a uma série de avanços no campo da Física». Responde assim à Apologética cristã que coloca o problema nos seguintes termos: «Não há efeito sem causa. Não há movimento sem motor. Não há criatura sem um criador». Estranhamente, a ocasião escolhida para divulgar tal declaração mostra que nem sempre é inteiramente respeitada a objectividade, atributo essencial da investigação científica. Parece existir, nesta atitude, alguma soberba, além da contradição com afirmações anteriores, o que faz lembrar a metáfora da Torre de Babel. O já referido António Damásio, no seu último livro, afirma que «a existência de Deus foi uma das mais belas histórias inventadas pelo espírito humano», remetendo a magna questão para o mundo da fantasia.

    Um sector da população católica, incluindo membros do clero, reage com intransigência face a declarações ou trabalhos que defendam posições diferentes das suas, mesmo que tenham outros méritos culturais e sociais. Vivemos, hoje, numa sociedade plural em que existe liberdade de pensamento, de expressão, de crítica entre outras. José Saramago é um exemplo do que pode a cegueira de muitas pessoas: foi o escritor português mais galardoado de sempre, um dos melhores, seguramente o mais lido e prestigiado em todo o mundo. Muitos não lêem as suas obras, declaradamente, porque era ateu; outros refugiam-se atrás do biombo da ausência de alguns sinais de pontuação nos livros que escreveu, assim escamoteando o seu azedume relativamente ao autor ou não mais do que a própria incapacidade de leitura. Foi desconsiderado em vida através de um tal Sousa Lara, secretário de Estado (ou seria subsecretário?) de quem a História não há-de falar, gesto que, possivelmente, terá sido elogiado pelo primeiro-ministro da altura. Este senhor, agora investido em funções mais elevadas, não compareceu no funeral do único Nobel português sob o pretexto de estar em férias nos Açores na companhia dos seus netos. Ninguém exigiria que viesse a nado lá da Região Autónoma, apenas que apanhasse um avião de carreira, cumprisse o protocolo de tais ocasiões e retornasse ao aconchego da família.

    Falece à Ciência, em geral, a humildade de reconhecer que está muito longe de responder a todas as indagações do homem por mais avanços que tenha alcançado, da mesma sorte que ao crente, qualquer que seja a sua religião, é exigida a abertura de espírito capaz de os reconhecer e de contestá-los à luz da Fé.

    Por: Nuno Afonso

     

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