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    Arquivo: Edição de 30-11-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Sentimento de pertença

    Há coisas de que só tomamos consciência quando delas nos vemos privados, outras sobre as quais nunca nos questionámos porque as temos considerado adquiridas, naturais, como o facto de respirarmos, sentirmos necessidade de tomar alimentos ou sabermos quem somos e o lugar que ocupamos no cosmos. Já nas mais antigas civilizações, sobretudo na Grécia, alguns homens de rara lucidez procuraram respostas para várias questões fundamentais, porém a esmagadora maioria dos humanos preocupou-se sobretudo com a própria subsistência e dos seus, a observação de códigos religiosos e comportamentais comuns cuja justificação nem sempre era tida em conta.

    Nestes códigos estava implícito o sentimento de pertença ao reino animal racional, ao género humano e a diversos grupos sociais como a família, a comunidade, o país e, mais vagamente, o mundo, algo que, durante milénios, não passou de uma ideia informe, abrangendo apenas algumas terras vizinhas como bem demonstra a expressão admirativa do Jubinal depois de percorridas minguadas dezenas de quilómetros até Macedo de Cavaleiros na companhia do pai: «Ó senhor pai, olhe que o mundo é bem grande!». Sempre ouvi dizer que algumas pessoas da minha aldeia nunca tinham ido sequer a Bragança, que ficava a duas horas e meia de caminho, a pé, que eu percorri inúmeras vezes em criança. Nem parece claro que, em alguns casos, soubessem distinguir, em que consistia o facto de serem portuguesas. A situação é, hoje, muito diferente. O alargamento da instrução a camadas outrora dela privadas e a facilidade que, actualmente, existe nas deslocações fazem com que o sentimento de pertença seja, em geral, entendido nos diversos níveis: local, regional, nacional, mundial. Conservando embora traços culturais de berço, o homem do presente é um cidadão de toda a parte. Desde que preencha os requisitos legais de permanência e (ou) de trabalho no(s) país (es) que escolher para se fixar, passa a ter completa liberdade, pode dispor dos fundamentais deveres e direitos dos que aí nasceram. No interior do seu país, o indivíduo não tem qualquer restrição para conduzir a sua vida, manifestar-se, locomover-se, reunir com quem entender, fazer valer os seus direitos.

    Em tempos idos, as pessoas eram identificadas pelo nome ou pela alcunha do pai ou da mãe, mormente quando possuíam um nome vulgar como José, João, Manuel, António ou Maria e havia que distinguir uns dos outros. Era o Tonho (António) do Barrondas, o Manuel do tio Bernardino ou da senhora Prazeres, o Zé do Bernardo o Beto (Alberto) do tio Adriano ou a Maria da tia Carolina. Quando um homem ia casar a outra povoação, ficava, muitas vezes, conhecido pelo nome da aldeia de que provinha. Não raras vezes, assumia o novo apelido e transmitia-o aos filhos no registo civil, assim demonstrando o apreço pela terra de origem. Esse costume determinou a proliferação de apelidos correspondentes a lugares (aldeias, vilas ou cidades) hoje comuns na antroponímia portuguesa, tendo desaparecido todo o sentimento de pertença a tal lugar. Em muitas aldeias do interior, era costume intimar o forasteiro, que viesse namorar, “à séria”, uma jovem da terra, a “pagar o vinho” aos rapazes do lugar, em geral ao domingo, dia em que a toda a mocidade se encontrava predisposta ao lazer. Seria assim a modos que um imposto para ganhar o direito à cidadania local.

    Na minha juventude, li, entre outras obras, os romances de Júlio Dinis que ainda hoje revisito com encantamento. O autor localizou os seus enredos nos concelhos de Vila Nova de Gaia e de Ovar mas, à medida que perpassavam no meu espírito, situava-as em locais que conhecia porque as referências não diferem muito de uma zona para outra dentro do nosso país.

    Seja como for, entendo que o sentimento de pertença não deveria ser levado a extremos como com frequência sucede. Há quem julgue que o facto de ter nascido e vivido numa localidade lhe concede privilégios de que todos os outros deverão ser privados. Ainda que não o verbalizem, a cada passo exibem um ar de superioridade como que a dizer: «Que vem este (esta) dar palpites a nós que somos de cá?».

    A Bragança dos meus primeiros anos era uma pacata cidade de província, com limites geográficos bastante definidos, que inflava durante o ano lectivo pela permanência dos jovens que ali acorriam para frequentar o único Liceu do distrito, o Seminário Diocesano, os colégios masculino e feminino, ou a Escola do Magistério Primário. Os moradores conheciam-se mutuamente, existia uma demarcação reconhecível entre as famílias, identificavam-se os que chegavam de outros lugares, fossem autoridades, professores, funcionários públicos e outros. Ainda que não existisse discriminação, os cafés da cidade que abriam para a Praça da Sé reflectiam com alguma nitidez os vários estratos sociais: o Chave d’Ouro frequentado pelas personalidades gradas e as famílias tradicionais; o Central invadido pelos estudantes, tesos, com poucas excepções, que juntavam moedas para disputar uma partida de bilhar; um pouco mais tarde, o Florida, novidade a que acorria uma miscelânea de professores, funcionários, comerciantes e empregados em geral. As tabernas acolhiam as franjas menos favorecidas da urbe, os beberrões auto-marginalizados, gente das aldeias em dias de feira. Esta cidade quase parada no tempo começou a modificar-se a partir dos anos sessenta com a chegada em força das poupanças da emigração para os países europeus sobretudo a França e a Alemanha. Em pouco tempo, romperam-se os limites do burgo, transformaram-se quintas e outras propriedades agrícolas em prédios de alguns andares para responder a uma classe média em expansão e a emigrantes que aplicavam os dinheiros economizados em fracções imobiliárias, proprietários rurais que investiam as suas poupanças em apartamentos ocupados pelos filhos que chegavam, agora, em maior número às escolas do ensino médio. Surgiram novos bairros, acrescentando exponencialmente a população da cidade. As mercearias tradicionais deram lugar a supermercados e, anos depois, a hipermercados. Face a um fenómeno tão rápido e de tamanhas dimensões, a população “nativa” sentiu-se incomodada mas não pôde reagir. Foi consumindo o azedume em críticas privadas, em atitudes sobranceiras de menosprezo pelos bárbaros recém-chegados. A cidade pertencia-lhes, quem eram estes arrivistas que vinham não só alterar os seus hábitos como usufruir ilegitimamente, no seu entender, de privilégios que lhes pertenciam?

    Ermesinde seguiu, com toda a probabilidade, um percurso semelhante. No cômputo geral da população citadina, os naturais devem representar uma percentagem inferior a 20%. Aqui verificou-se, claramente, o tradicional fenómeno do êxodo para a periferia das grandes cidades, a esta localidade acorreu gente de muitas zonas do país, sobretudo do Norte e do Nordeste, uns que vieram trabalhar na chamada capital do Norte, outros que frequentaram a Universidade local e por cá exercem ou exerceram a respectiva actividade profissional. Toda esta gente contribuiu para o desenvolvimento que se tem verificado, com o seu trabalho, as suas economias, a sua participação na vida social na medida das suas possibilidades e competências. Se é correcto e desejável que os naturais da terra dela se orgulhem e queiram preservar o seu património cultural, não me parece legítimo que invoquem a sua condição para reclamar privilégios de que não possuem a exclusividade. É tarefa de todos lutar pelo engrandecimento e a melhoria das condições de vida na cidade em que vivemos e a que nos liga um sentimento de pertença.

    Por: Nuno Afonso

     

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