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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 15-11-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Viagem no tempo

    Desde que reflecti sobre mim e sobre o mundo em que me foi dado viver, apercebi-me de que tinha cavalgado a História num corcel de sonho, vencendo séculos, dos tempos medievais ao presente, sem que o meu tempo real correspondesse, de algum modo, a esse movimento. E, ao dizer assim, talvez me deixe arrebatar pela visão poética da vida que, para as pessoas da minha comunidade, tinha um significado bem mais prosaico.

    Falar de Idade Média, quando tanto nos afastámos dela, é já em si, um discurso lírico, porque foi uma época de grandes dificuldades económicas para a maior parte da população europeia, em particular dos nossos conterrâneos, de guerras constantes e brutais, de epidemias arrasadoras, as chamadas pestes que dizimavam grande parte das populações, de isolamento nos aglomerados rurais e até em alguns urbanos, de analfabetismo quase total e profunda religiosidade, embora também de grandes realizações sobretudo a partir do séc.XIII, longe da denominação de “época das trevas” tão cara aos humanistas.

    A paixão pela período medieval surgiu durante o Romantismo por oposição ao pendor clássico que se podia definir com exactidão e se reduzia a um conjunto de regras formais, enquanto os românticos defendiam um sistema de valores dinâmico, sonhando com a perfeição do homem nos seus infinitos recursos espirituais. Ultrapassada essa fase, persistiu alguma nostalgia no espírito das pessoas que as leva, ainda hoje, a deixarem-se fascinar pelo “modus vivendi” das gentes de há mais de meio milénio, promovendo reconstituições dos variados momentos da sua existência: ofícios que exerciam, vestuário usado de acordo com a sua condição social, formas de comerciar, expressão das suas crenças, modos de convivência, hábitos da vida quotidiana.

    LEMBRANÇAS

    DO RIO

    As minhas lembranças do Rio de Janeiro, cidade onde nasci e morei até aos quatro anos e meio, são vagas e pontuais. Quase posso afirmar que a minha vida teve o seu verdadeiro início nesse Junho longínquo em que, com a derrota do nazismo, a Europa ressurgia dos horrores da segunda guerra mundial. Surpreendeu-me a entrada nesse mundo tão diferente daquele em que vivera: as ruas, as casas, a maneira como as pessoas viviam, as brincadeiras dos meus novos amigos.

    Lembro-me dos homens mais velhos – nesse tempo envelhecia-se mais depressa – envergando fatos escuros de lã grosseira a que chamavam “pardo”, mais conhecido por burel, e das mulheres embiocadas e quase todas vestidas de negro, homens e mulheres calçando tamancos; das casas baixas de pedra escura com portas e janelas de madeira tosca; das ruas de terra batida e rochas afeiçoadas pelas rodas ferradas dos carros de bois num vaivém constante, esses veículos tão estranhos que produziam um barulho estrepitoso quando circulavam sem carga e chiavam sob o peso dos produtos da terra, puxados por juntas de vacas ou de bois a tilintar campainhas que traziam penduradas ao pescoço; das galinhas que cirandavam, debicando aqui e acolá, e dos suínos que, de vez em quando, fugiam dos currais e vinham embugar-se no lodo dos caminhos; das estrumeiras que cobriam as passagens com folhas de carvalho ali despejadas e espalhadas no Outono pelos moradores; do toque do sino às Ave-Marias manhãzinha cedo e às Trindades a lembrar o fim de cada dia para uma oração e do silêncio que descia sobre a aldeia mal a noite desdobrava o seu negro manto. Os carros levavam arados e grades de madeira para lavrar e alisar as terras depois de semeadas ou traziam das leiras as batatas, o milho, os nabos, o cereal, a erva e outras culturas. Havia um tempo para as sementeiras e outro para as colheitas, de permeio ia-se fazendo a preparação da terra, a plantação do renovo e a rega assídua e viam-se, campos fora, dezenas de lavradores, tocando os animais e servindo-se dos arados para sulcar as terras nos tempos certos e mulheres jovens ou mais vividas, soltando na brisa os seus cantares.

    Mas nem só de trabalho constava a vida na aldeia. Havia as pausas semanais ao domingo, o Dia do Senhor, com a celebração da Missa em que todos participavam, com muito raras excepções, e os momentos de convívio mais ou menos prolongados, a reunião dos moradores à saída da cerimónia religiosa e as tardes de jogos em que os mais novos participavam alegremente e a que os mais velhos assistiam divertidos, trocando opiniões. Maria Helena da Cruz Coelho na História da Vida Privada (1º vol. – Idade Média) escreve: «O domingo seria depois, para os que podiam, um dia de bem vestir, em que a mesa se cobria de um número maior, mais variado e bem confeccionado de alimentos, seguindo-se-lhe um tempo de grande convivialidade pela conversação, troca de notícias e jogos. Constituir-se-iam, por certo, círculos separados de mulheres que, fiando, tecendo ou cosendo, falariam dos afazeres domésticos, dos cuidados com os familiares, da previsão do futuro dos filhos ou de homens...».

    AS FESTAS

    DE ALDEIA

    Em todas as aldeias, celebrava--se uma ou mais festas a que não deixavam de comparecer rapazes e moças de aldeias vizinhas para conviver e participar nos bailaricos, ocasião para encetar namoros e durante os quais, frequentemente, aconteciam zaragatas, revelavam-se ciumeiras e acumulavam-se rancores. Eram dias em que se convidavam parentes e amigos para um almoço mais substancial, seguido de animadas conversas sob o estímulo do vinho de colheita do anfitrião. Outras festas circunscreviam-se ao âmbito familiar como o Natal, a mata-porca, casamentos e baptizados mas não deixavam de constituir ocasiões de comunicabilidade que, quase sempre, conduziam a presentear e a manifestar afecto também a pessoas exteriores ao núcleo de parentesco.

    A vida nas aldeias do nordeste transmontano deveria ter sido mais ou menos assim desde os tempos medievais. Essa foi a percepção que tive desde que comecei a interessar-me por assuntos de História, sobretudo da nossa História e que a obra acima citada vem atestar. Ao ler o que se refere à vida rural, consigo encaixar sem grande dificuldade as peças do puzzle no tabuleiro da minha memória. Haveria, em meados do século transacto, pequenas diferenças, umas que respeitavam à criatividade dos aldeãos ao longo das gerações, outras que teriam a ver com a reformulação política que se foi operando, como na passagem da monarquia para a república. Todavia, no essencial, quem viajasse numa qualquer máquina do tempo, desde o início da nossa vivência como nação, não ficaria embasbacado ao comparar as respectivas épocas. Só nos últimos 30 anos do século é que se operou uma significativa transformação com a abertura de estradas a ligar a aldeia às suas vizinhas e à sede do concelho, tornando possível a instauração de um transporte público tri-diário e a frequência das crianças a estudos mais desenvolvidos na cidade; a instalação da luz eléctrica a permitir que os meios audiovisuais proliferassem nas residências e que os hábitos de vestuário e de diversão, mormente para os mais jovens, se tornassem em quase tudo iguais aos da cidade. Ironicamente, à medida que a vida no campo se tornava mais fácil, reduzia-se a população, muitas pessoas juntaram-se aos que já tinham emigrado para países europeus e outros prosseguiam os estudos e saíam à procura de trabalho em diferentes paragens.

    UM AMBIENTE

    QUE JÁ NÃO EXISTE

    Toda a minha infância e parte da juventude decorreu, pois, num ambiente que já não existe. Nas décadas de 40 e de 50, ainda havia lembrança de cultivo do linho, uma extensão de terra no meio da povoação, talvez a mais fértil e de fácil regadio e onde quase todas as famílias possuíam pelo menos um chão, chama-se Veiga dos Linhos, sinal de que, não havia muito tempo era essa a cultura principal que ali se desenvolvia. Algumas famílias ainda tinham em seu poder utensílios destinados à preparação do linho e, em bastantes, conservavam-se enxovais onde predominavam as peças feitas com esse tecido: toalhas de mesa e de rosto, jogos de cama, panos de adorno doméstico. A tia Ana Morais mntinha um tear mas já quase não o utilizava. Quem durante alguns anos ainda exerceu o mester aprendido na infância era o tio Manuel Ferreiro, assim chamado porque tinha uma forja onde a criançada se juntava a presenciar o esforçado trabalho para transformar o ferro em tenazes, estrefogueiros, ferraduras e outros apetrechos de grande utilidade nos lares da aldeia e até de terras vizinhas. Havia um carpinteiro, vários sapateiros e até à morte do tio Papim (ou Manuel Gaiteiro, porque em tempos tocou gaita de foles) faziam-se ligas de palha valga de centeio para fabrico de chapéus. No entanto, se fosse necessário capar porcos, chamava-se o capador de Carrazedo ou de Vila Boa. Animal que ficasse doente ou se magoasse requeria a atenção de um ferrador (alveitar) que vinha de Vila Boa, ou de Bragança. Dentista era, geralmente, o barbeiro que arrancava dentes com instrumentos destinados a outros fins quando se tornavam mais renitentes, de resto, um fio servia à perfeição. Na geração anterior, andava pelas aldeias uma espécie de “dentistas” ou “médicos” sem formação que transportavam os seus aparelhos numa maleta e se albergavam onde lhes dessem guarida.

    Guerra Junqueiro, num dos seus magníficos poemas, falava de mendigos que outrora andavam de terra em terra pedindo esmola:

    «Passam em bandos, em alcateias/ Pelas herdades, pelas aldeias».

    Não me lembro de passarem em bandos, muito menos em alcateias como lobos. Esfaimados sim, mas humildes, eram os que pediam uma esmola “pelo amor de Deus” aos quais poucos negavam um pedaço de pão, um cibo de toucinho ou uma refeição frugal. Quem nada podia oferecer, dispensava-os com um “Deus o favoreça!”.

    Por: Nuno Afonso

     

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