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    Arquivo: Edição de 15-06-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Malhas que a vida tece

    Julgar-se-ia que um projecto tão longa e idealmente construído havia de causar ao tio José não apenas frustração mas, acima de tudo, um forte abalo no amor--próprio ao ser cortado cerce e “ex abrupto”. Não me distanciarei da verdade se disser que dois factores terão sido responsáveis por tal desfecho. Antes de mais, em todo o tempo decorrido, muitas mudanças se tinham operado nas suas vidas e no mundo em torno. Maria Gracinda não aceitara de bom grado as frequentes notícias de cometimentos amorosos que eram atribuídos ao José, ainda que não passassem de meros boatos. Comprovado foi o envolvimento com a Albina, criada da casa onde viveu com o irmão Francisco e família, de que resultou uma criança falecida pouco depois do nascimento. O episódio provocou escândalo e teve consequências muito negativas: a Albina foi despedida logo que o Francisco tomou conhecimento do facto e o José, arrependido embora, e penitente pelo resto da vida, sempre se afirmou vítima de violação. Foi nessa altura que decidiu viajar para o Porto e estabelecer-se com uma casa de pasto. No juízo de Maria Gracinda, porém, ele foi condenado e sem apelo. O sonho de partilharem a vida, a ter mesmo existido, feneceu. Mas guardou esse luto para o revelar no momento adequado. Outro factor terá sido a opção tomada pelo José de lhe propor casamento apenas quando tivesse uma situação económica estável. Daí resultou o argumento, invocado pela prima, de que, na sua idade, uma tal mudança já não era razoável nem prudente. Não obstante o duro golpe na autoestima, outro remédio não teve senão aceitar o veredicto.

    – Tenho a impressão de que um relacionamento assim nunca poderia dar certo. O amor é uma planta que precisa de ser cuidada, adubada, regada com frequência, não se compadece de afastamentos, de ausências. “Longe da vista, longe do coração” – não é assim que reza o provérbio? – Se existiu amor entre eles e não mera fantasia do tio José, que lhe restava senão dar também por encerrado esse longo capítulo da sua vida? Algum tempo depois, voltou recomposto e decidido a virar a página – opinou o Ricardo num dos frequentes encontros que tivemos no Rio de Janeiro.

    – Como assim? – indaguei – Tinha outra decisão já tomada?

    – Acho que sim. O tio José rondava os quarenta anos e também admitia que era tarde para mudar de direcção no sentido do casamento. Se estás a pensar na moça argentina que conheceu na viagem de ida, posso garantir que ainda não era para levar a sério. O que eu quis dizer é que ele já se via como solteirão. De facto, o passar dos anos reduzira as suas hipóteses. As “noivas” possíveis já haviam tomado as próprias opções. Por outro lado, sempre fora muito dedicado aos sobrinhos e estou em crer que o esquema dos casamentos entre eles fundamentava-se no desejo de facilitar a transmissão dos seus haveres quando Deus o chamasse.

    – Nossa! Que cheiro a resignação! Só faltou entrar para um convento…

    – Foi um período complicado da sua vida. Acredito que se sentisse deprimido. Casar por casar estava fora de questão, era um homem muito ponderado para dar um passo de risco. O que lá na “santa terrinha” chamamos engates abundavam, mas ele nunca arriscaria levá-los a sério, eram encontros fugazes, sem compromisso. Havia, no entanto, outro problema que o incomodava bastante. Durante a sua permanência no Porto, tornara--se amigo do Engenheiro Coutinho, industrial do ramo têxtil. Ora, o dito senhor tinha duas filhas que pouco deviam à beleza e, por isso, tanto elas como os pais aceitariam de bom grado um enlace desigual no que respeita a património ou falta dele, tanto mais que o tio José era um belo homem. Assediaram-no enquanto viveu na Invicta, mas o tio José fazia-se desentendido, não ia além da polidez no trato com qualquer delas. Guilhermina, a mais nova, continuou a escrever-lhe, de vez em quando, e ele protelava a resposta até que lhe parecia a demora excessiva. Então, alinhavava umas frases simpáticas mas contidas sobre a vida no Brasil, a beleza do Rio, algum comentário breve acerca da política brasileira. Omitiu a viagem a Portugal para evitar desculpar-se de não a ter visitado durante a sua estada em terras lusas. No regresso, decidiu encerrar também esse episódio marginal e desgostante: enviou-lhe uma carta dizendo que os negócios o absorviam demasiado, agradecia a ela e a toda a família as atenções que sempre lhe tinham dispensado mas que, doravante, era melhor terminarem a correspondência. Parece terem compreendido o significado da mensagem porque não voltaram a importuná-lo.

    – Mas o homem põe e Deus dispõe, não é?

    – Precisamente. O destino parece teimar em surpreender-nos. Quando ele julgava que a jovem professora argentina “já estava noutra”, eis que chega uma carta de Buenos Aires a relatar, em termos entusiásticos, as maravilhas que ela e as companheiras tinham visto na digressão pelas principais cidades da velha Europa e as peripécias que sempre ocorrem em tais circunstâncias. Terminava convidando-o a visitar a sua cidade e tão convincente se mostrou que o tio José, pouco dado a viagens, decidiu aceitar o convite.

    – E, de facto, veio de lá convencido…

    – Não foi bem assim. Temos o hábito de pensar linearmente e considerar que “tout va bien qui finit bien” ou, como nós dizemos, “tudo vai bem quando acaba bem.” Mesmo se tudo acaba bem, houve certamente que vencer dificuldades, hesitações, desconfianças, idiossincrasias. Não fosse ele transmontano, ligado à sua terra como as velhas cepas, e tudo seria mais fácil. Regressou cheio de dúvidas, de angústias. Temia que ao levar por diante uma tal relação coroada com matrimónio “de papel passado” e bênção divina, ainda por cima com mulher sul-americana, perderia, definitivamente, a possibilidade de voltar à aldeia onde nascera. Confiou-me o seu receio que, logicamente, contrariei. Disse-lhe que, duma forma ou doutra, o seu futuro seria no Brasil, poderia voltar a Portugal em passeio, mas jamais para lá se fixar. Creio que o convenci porque, meses depois, rumou novamente à capital argentina para oficializar o noivado, trouxe a família da noiva para conhecer o Rio de Janeiro e casaram como ambos desejavam.

    O que aconteceu em seguida foi do meu conhecimento. Já avisto o nevado cume que a estrada alcança e, voltando a cabeça sobre os meus passos, garanto que o tio José e a tia Nelly souberam construir uma sólida união de que resultaram três filhos, um rapaz e duas moças, bem preparados cívica e moralmente. O tio José voltou a Portugal para se desfazer dos seus bens e, meses antes de partir para uma vida certamente melhor, fez ainda uma viagem à terra que foi seu berço.

    Por: Nuno Afonso

     

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