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    Arquivo: Edição de 30-05-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    História de amor que nunca existiu

    Quase sempre as melhores histórias de amor são aquelas que não chegaram a sê-lo ou, tendo-o sido, jamais se concretizaram. Uma história de amor há-de ter condimentos dramáticos, pícaros ou trágicos, de preferência destes últimos, para merecer a aceitação generalizada do público como a literatura mundial fartamente comprova. As histórias de Tristão e Isolda, de Romeu e Julieta, de Pedro e Inês, entre muitas outras, tornaram-se ícones universais pelo fim trágico que tiveram as personagens e os seus amores. Não havendo espessas camadas de sangue espalhadas na tela, o quadro perde grande parte do seu valor. Qualquer das histórias que referi atingiram o paroxismo da tragédia, algumas ultrapassaram os limites do humano, fizeram com que a vida e a morte se confundissem. Tal sucedeu com D. Pedro que mandou coroar Inês de Castro como Rainha de Portugal após a sua morte. O picaresco é outro elemento que coloriu numerosos casos de amor e foi tratado por escritores famosos ao longo dos séculos. A maioria das grandes histórias tem como característica principal o desenrolar de um drama ou de uma série de dramas, de episódios curiosos, de encontros e desencontros. Muitos amores, no entanto, não passaram de intentos que o destino se encarregou de desfazer.

    O tio José era o mais novo de oito irmãos, seis homens e duas mulheres filhos de um lavrador abastado. Tal como os seus irmãos, criou-se na aldeia e ali permaneceu até cerca dos 30 anos nas duras lides agrícolas. Declinavam os anos 40 quando rumou ao Porto estabelecendo-se com uma pensão no centro da cidade. Durou aproximadamente um lustro esta incursão comercial. Como dois dos seus irmãos já tinham emigrado para o Brasil, seguiu-lhes as pegadas na ânsia de construir um futuro sólido. Para isso muito contribuiu a convicção de que haveria de casar com uma das suas primas e oferecer-lhe uma vida desafogada. Também nesse aspecto pensava seguir o exemplo de dois irmãos.

    Era um homem alto e bem constituído de fisionomia atraente, grande simpatia e fina educação que ninguém diria ser originário do meio rural. Gostava de vestir bem e com gosto invulgar. Ao longo dos anos, foi criando boas amizades, primeiro no Porto, mais tarde no Rio de Janeiro. Como gerente de confeitaria bem situada num bairro da Zona Sul, privou com industriais, políticos, embaixadores, poetas, entre muitos outros que lhe deixavam o seu cartão de visitas e o convidavam para as suas festas a que muito raramente comparecia porque, humilde como era, não se sentiria confortável entre pessoas de nível superior ao seu.

    Não demorou muito a tornar-se sócio de um dos irmãos em estabelecimento de bar e restaurante. Mais um ou dois anos e julgou chegada a hora de concretizar o seu desejo. Pôs em dia a documentação necessária, adquiriu passagem num navio de bandeira italiana e embarcou com destino a Lisboa. Pois que cada pessoa é um mundo e o transatlântico transportava centenas de mundos, era possível e até bastante provável que alguns deles viessem a interagir ou mesmo a interpenetrar-se pela singela razão de que as pessoas conviviam dia a dia, observavam-se mutuamente, travavam conhecimento umas com as outras, mantinham conversas mais ou menos casuais, versando temas que, umas vezes, não iam além do trivial, outras continham o fermento de um mais íntimo relacionamento futuro.

    O tio José reparara, desde o embarque, num grupo de jovens de expressão castelhana que esbanjavam alegria e a descontracção própria desse período da vida. Eram moças argentinas em viagem de fim de curso à Europa. O tio José em nenhum momento tentou aproximar-se e, durante quase toda a viagem, apenas trocou com elas palavras de circunstância. Na véspera do desembarque em Lisboa, debruçado na amurada, contemplava o tranquilo vaivém das ondas, a coreografia dos peixes-voadores e dirigia o olhar até onde o mar e o céu pareciam fundir-se, quando se deu conta de que alguém estava a seu lado. Viu que se tratava de uma das moças finalistas, aparentemente desgarrada do grupo, para, também ela fruir daquela bonita manhã em alto-mar com uma brisa primaveril a acariciar-lhe o rosto delicado. Entabularam um diálogo despretensioso e ele deixou-se cativar pela simpatia que irradiava da sua figura: alta, esbelta, de um tipo físico diferente do que as latinas normalmente possuem, mas não menos atraente. Perguntou-lhe se conhecia Lisboa, ele respondeu que era português. “Importava-se de nos mostrar a capital do seu país?” – perguntou--lhe. Ele, encabulado*, disse que lamentava mas tinha urgência em viajar para Bragança, no nordeste do país, logo após o desembarque, no entanto deixava o seu contacto e ficava à espera das suas impressões da viagem não apenas acerca da capital portuguesa mas, igualmente, dos outros países que tencionavam visitar. Ela prometeu que o faria. “Aqui tem o meu cartão – ofereceu o tio José, dois dedos à procura, no bolsinho do casaco que envergava. Porém, do bolso saiu outro cartão que não o dele, o de um embaixador seu amigo. Riscou o que vinha impresso e escreveu, no verso, o seu próprio nome e direção em Portugal. “Peço desculpa, não repare, é o cartão de um amigo, os meus encontram-se noutro fato. Também, não perguntei o seu nome…”. “Maria – respondeu ela, sorridente, já a despedir-se – Maria Nelly”. “Muito prazer – disse – fico à espera das suas notícias. Vou demorar-me ainda algum tempo junto dos meus familiares antes de regressar ao Rio de Janeiro”.

    Pouco mais de uma semana volvida, recebeu uma carta com selo de Itália. Teve certa dificuldade para entender o seu espanhol sul--americano que lhe dava conta do encanto que tinha sido a visita a Lisboa, infelizmente sem a companhia dele, declarava-se rendida a Paris e aos seus monumentos de que destacava o Museu do Louvre. Estavam, por aqueles dias em Roma e contavam ainda ir a Florença e a Veneza. Falava-lhe também de Buenos Aires, sua terra natal e dava--lhe o endereço para, se assim o desejasse, lhe dar novas no regresso ao Brasil. Para o tio José a carta chegou no momento adequado após a decepção de ver recusado pela prima Maria Gracinda o seu pedido de casamento.

    Manteve-se em Trás-os-Montes ainda algumas semanas mas começava a sentir, agora, menos argumentos para racionalizar a sua permanência em Portugal.

    O navio que o transportou de volta ao Rio de Janeiro deu-lhe condições para redireccionar a sua vida e arquitectar o futuro dos sobrinhos que, dum lado e do outro do Oceano, atingiam a idade adulta, eles no Brasil, elas em Portugal, tal um Santo António moderno a quem a própria experiência nada havia ensinado. Para o Ricardo parecera-lhe que a sobrinha Luzia tinha o perfil ajustado; o Jorge ficaria bem com a Maria de Lurdes e ao Fernando apontara a Helena como candidata à medida. À chegada havia de lhes revelar o seu plano. A verdade é que toda a família, incluindo os(as) interessados(as), ficou a saber desse bem intencionado xadrez, mas nenhum dos jogadores avançou com as suas peças, procurando outras saídas no tabuleiro amoroso. Contudo, as indicações ficaram registadas pelos comentadores e, até que o jogo prosseguiu com lances diferentes e decisões diversas, permaneceu a ideia de que, tarde ou cedo, o jogo havia de ter o final previsto pelo tio José.

    Durante a viagem o tio José conheceu uma jovem, filha de um industrial português radicado em S. Paulo. Bonita, de uma simpatia transbordante, poderia ser uma alternativa para o Ricardo. A moça disse chamar-se Alda e entregou-lhe uma fotografia e o seu endereço na cidade paulistana. O tio José elogiou os sobrinhos, nas suas palavras, de boa aparência, educados e trabalhadores. Ela mostrou interesse em conhecê-los.

    - Escrevi-lhe uma carta a elogiar a sua beleza e o meu interesse em conhecê-la pessoalmente – contava-me o Ricardo anos mais tarde. Algum tempo depois, recebi a resposta dentro de um sobrescrito comercial. Tratava-se de uma empresa fabricante de sacos de papel para vários fins. O proprietário dirigia-se-me, em tom áspero e até insultuoso. Chamava-me aventureiro e outros mimos de igual jaez e de que já nem me lembro. Ninguém gosta de ser maltratado, mas resolvi encerrar ali o caso.

    Quanto ao tio José que tinha ido a Portugal à procura da noiva imaginada, veio a casar com a jovem porteña** que conhecera na viagem, uma viagem que durou até à sua morte e de que resultaram três filhos mui guapos, ou, como se diz em Trás-os-Montes, muito jeitosos. Mais tarde ela confessaria que não tinha acreditado na desculpa que o tio José lhe dera quanto ao nome impresso no cartão, pensou que ele era, de facto esse embaixador que não quisera dar-se a conhecer como tal. Nos contactos que depois mantiveram, ela apercebeu-se de que nada tinha perdido ao dar-se conta do engano.

    * Encabulado - envergonhado, atrapalhado.

    ** Porteña - nome pelo qual são conhecidos os h

    Por: Nuno Afonso

     

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